18 de set. de 2007

AINDA O CINEMA...

* Sim, era uma vez um rapaz chamado J. Oliveira Santos (a quem os amigos tratavam meramente por Jota). Compunha versos, escrevia artigos em jornais, todo ele um nervo sensitivo mas sem o alimento cultural adequado. Até que, um dia, a novidade estoirou, grandiloquente, pelo burgo: Oliveira Santos dispunha-se a fazer um filme sobre a Figueira: «Dois Corações... Um Destino». Pelo título se poderá aquilatar do contexto.
Jamais o ingénuo fantasista entrara num estúdio. De cinema, portanto, não sabia nada. O operador era Manuel Santos, antigo comerciante com alguns meios de fortuna. Este émulo de Paz dos Reis possuía uma câmara manual, assaz rudimentar, com que se comprazia, por desfastio, a fixar as regatas, cenas de praia e pesca, touradas e concursos hípicos. Com todos os defeitos, por conseguinte, de quem se habituara a ver no bilhete postal o supra­-sumo da arte cinematográfica. .
J. Oliveira Santos «vestia-se» de realizador, isto é, enfiava uma camurcina branca, com o cinto a vincar-lhe fortemente o estômago, acocorava-se junto do tripé, e gritava, pelo majestático megafone, com muita ênfase, muito brio, estas duas expressões apenas: «filma» e «corta». Como não havia som, como o som não era síncrono, nem havia iluminação adequada, nem, enfim, se atendia àquele mínimo de preceitos técnicos necessários a um filme, o resultado estava bem à vista: umas figuras pasmadas de reportagem de cinema mudo, a abrirem e a fecharem puerilmente a boca, a derivarem algo bruscas e grotescas pela pantalha e a ges­ticularem em conformidade. Uma parvoíce. . .
O filme, é bom que se esclareça, embora pretendesse ser uma obra de fundo, com acção e personagens várias, visava a propagandear as belezas da Figueira. Como, porém, faltasse o dinheiro para levar a empresa por diante, decidiram, decidiu J. Oliveira Santos, começar pelo fim, quer dizer, fazer um «trailer», uma amostragem capaz de revelar às forças vivas as virtualidades hollywoodescas da terra, e com isso obter os fundos necessários à ultimação da fita: Uma originalidade; creio bem, em toda a his­tória do cinema. .
E os actores? Ora vejamos. Ela chamava-se Madalena Ótão (hoje Madalena Soto), e ele, na vida real marido dela, Manuel Brandão. .
Este Manuel Brandão, filho embora de pais portugueses, era brasileiro. Autor de dois livrinhos de versos (falta-me a paciência para ir lá acima vasculhar a biblioteca), era um moço simpático, esguio e moreno, porém doentiamente ciumento. Algo como um cantor de tangos da época.
Enquanto, por exemplo, a mulher levantava voo do campo Humberto Cruz, entregue a um piloto qualquer, ficava-se ele, cá em baixo, com um grupo de amigos, a rilhar o lábio nervoso.
Entre os autores da música do famigerado «Dois Corações... Um Destino», estava eu, que completara pouco antes dezoito anos. Tudo então eram pretextos para almoçaradas e jantaradas de todos os intervenientes no filme. Comia-se e bebia-se desalmadamente. Dinheiro,- donde vinha, não sei. Havia contudo o Luís Lopes de Oliveira, filho de um pesado negociante de vinhos e azeites, que sempre me parecera sensível à cheirosa frescura da Madalena. E umas letras que o Cândido J. Oliveira Santos ia sacando do banco onde estava empregado.
Uma noite, eu a chegar ao Bairro Novo e o Luís Lopes, com toda a equipa, muito obediente, à sua volta, a dizer-me, assaz deci­sivo e patrocinador:
- Você tem de partir amanhã de manhã para Lisboa. É pre­ciso contratar a Orquestra Sinfónica Nacional para gravar a mú­sica do filme.
Tímido, varado, aquilo pareceu-me, confesso, excessivo. Mas quem era eu para contrapor fosse o que fosse? Aliás, o que se pretendia de momento, agora que se aproximava a estreia do «trailer», era que eu gravasse ao piano os temas principais, que haviam de acompanhar os 160 metros de película até então im­pressionados. Passaram-me para as mãos uns contos de réis e aí vou eu (no fundo muito satisfeito) a caminho de casa a preparar as malas.
Desembarquei em Lisboa por volta da uma e meia da tarde. Corria o mês de Julho de 1938- um Julho ardente e fulgurante que me fez bater as pálpebras quando, soberbo, me dirigi para o Suíço, famoso restaurante à esquina dos Restauradores com o Largo D. João da Câmara.

(…) Meia hora depois entregavam-me gratuitamente o disco que me apressei a ir guardar no hotel. Andei na pândega duas noites e, na véspera do dia da estreia do «trailer», dei-me ao cuidado de mandar um telegrama ao J. Oliveira Santos: «Chego amanhã de manhã. Abraços.»
O calor, em Lisboa, era de estucha. Ainda cedo, aí pelas oito, já o comboio ardia sob as cúpulas de ferro do Rossio. Tomei com muito garbo a minha 1.a classe - é sempre bom, confortável e re­confortante, viajar por conta alheia -, e arranjei lugar ao pé da janela. .
O disco, em vez de o ter metido na mala, não, senhor. Levava-o à parte, talvez para poder mirar-me nele, gozar-me do seu corpo redondo e flexível. E, agora, onde arrumá-lo? Em cima da mala, podia escorregar; na rede, ficaria a bem dizer suspenso e portanto sem apoio. Eureca: debaixo do banco. Aí é que ele iria bem.
Lá para as bandas das Caldas, e eu, satisfeito, bastante satis­feito, a degustar por antecipação aquele êxito - tinha, não o es­queçamos, dezoito anos -, começo a ver qualquer coisa como uma bicha negra a serpentear pelo chão da carruagem, uma escorrên­cia repugnante de alcatrão.
Aflito, sufocado, curvo-me, espreito, surpreendo com horror o disco convertido numa espécie de manteiga negra que vergonho­samente alastrava aos altos e baixos pelas réguas do pavimento. (…) Quando, por volta da uma da tarde, cheguei à Figueira da Foz, a estação abarrotava de gente à minha espera: toda a equipa do filme e enervantes aderentes, que muitos eram, além dos infa­líveis mirones.
Fomos dali em cortejo automóvel até ao Parque-Cine, incrível barracão no qual, de Inverno, até lhe chovia dentro. Cinco ou seis de nós, com o J. Oliveira Santos, lesto, a comandar, subimos à cabina. Pôs-se o disco, que entretanto secara, no prato do pick-up. Imagine-se a minha consternação, maior ainda, sem dúvida, que a dos outros: a voz do Pessa, mas já um tanto grave, um tanto perra, a querer dramaticamente extinguir-se: «Céu.., éu... ,éu... da Fi…Fi… (o Oliveira Santos, com o dedo, a fazer girar o disco). Música de…de…de…

* Luís Cajão, As Torrentes da Memória, 1979

17 de set. de 2007

JOÃO CÉSAR MONTEIRO (1939-2003)



*“Tive infância caprichosa e bem nutrida, no seio de uma família fortemente dominada pelo espírito, chamemos-lhe assim, da 1 ª República. Escusado será dizer que abundavam os dichotes anti-clericais, muito embora o meu pai desejasse que eu viesse a seguir a carreira eclesiástica. Em suma: não se percebia nada. Pelo menos à primeira vista.”
“(...) fixei-me com a família em Lisboa, para poder prosseguir a minha medíocre odisseia liceal. Instalado no colégio do Dr. Mário Soares, acabei por ser expulso ao contrair perigosíssima doença venérea. Pensei, então, que entre a política e as fraquezas da carne devia existir qualquer obscena incompatibilidade e nunca mais fui visto na companhia de políticos. (...) Filho que era de meu pai, atravessei senhorialmente muitos e variados empregos, mas em breve me apercebi que já não podia olhar o mundo da mesma maneira. Fui até Paris para ensaiar até onde me era possível ir. Não me era possível ir muito longe. Meses depois, «ayant connu pas mal de choses» era repatriado. Em 1960, encontrei o Sr. Seixas Santos que teve a bondade de me ensinar um pouco do muito que sabe de cinema.(...)”
“(...) trabalhei como assistente de realização do Sr. Perdigão Queiroga e admito que poderia ter aprendido mais qualquer coisinha se não tivesse sido tão presunçoso. Em 1963, na injusta qualidade de bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, parti para Londres a fim de frequentar a London School of Film Technique. Suponho que nunca por aquela escola passou aluno tão mau, mas nesse passo não tive grandes culpas no cartório: é que de facto os ingleses não nasceram para o cinema. (...) Em 1965, conheci o Paulo Rocha e os seus Verdes Anos, o Fernando Lopes e o seu Belarmino. Tomei-me de amizade pelo Fernando e de amores pelo filme do senhor Rocha, cujos hábitos de anacoreta o tornavam pouco acessível.”
“(…) Nesse mesmo ano, tentei pôr de pé um projecto de filme em 16 m/m, intitulado Quem espera por sapatos de defunto morre descalço. Dois dias de filmagens e rabinho entre as pernas. Falta de xis.(...) De novo na vida civil, os meus excessos ultra-românticos, temperados pela mais nobre profundidade sentimental, tiveram enfim (ai filhas de Sidon) a justa consagração, o que não me livrou de amouchar durante um ano como escriba de Filmes Castello Lopes, Lda.”
(…) O filme começou por ser relativamente mal recebido junto do Mecenas (quereriam ópera por 180 contos?), continuou, pateado num festival no Sul de Espanha e foi friamente acolhido pelos críticos presentes em Nice, aquando da chamada Semaine du Jeune Cinéma Portugais. Foi pena, porque me teria dado jeito, sobretudo no que toca à fruição de algumas benesses locais, mas já que não pôde ser, paciência! Tirando isso, aproveitei a estadia niceoise para comprar um lindo fato de banho de duas peças com a nota de 100 francos que o João Bénard me emprestou e ameacei partir uma garrafa de tinto na cabeça do Cunha Teles que, impensadamente, me chamou oportunista.”
(…)"Andar no cinema para ser contaminado por gravíssimos defeitos de carácter não é coisa que se faça a um velho católico e apostólico romano. Não acredito que se possam fazer bons filmes em pecado mortal e, por isso, espanta-me que a cólera do Senhor não se tenha ainda abatido sobre mim. É certo que o Senhor conhece a extrema pobreza em que vivo e, não obstante os caminhos da perdição serem infinitos, tem-me guiado certeiramente no exercício da minha arte."

* Da obra do cineasta, A Minha Certidão (&ETC, nº 4, 28.02.1973).

13 de set. de 2007

SANTA MARIA DE CEIÇA*



Se a terra falasse, havia de contar, por entre abundantes lástimas, muitos sinais do amor dos homens por ela... Terra humanizada é sem­pre mais que terra trabalhada. Se o homem só a quisesse como nascen­te de ouro, talvez já ela se tivesse extinguido. Mas, se a terra dá o pão à gente, também nós lhe damos pão. E o pão mais rico que lhe damos não é tanto a semente que a fecunda; é a alma que lhe confiamos.
Estou-me agora a lembrar de uma certa terra, entre dunas que os pi­nhais cobriram, e o campo aberto pelas águas que descem de Sicó em busca do Mondego, e o Mondego leva ao mar. O nome que lhe dou, vou agora apenas segredá-lo, já que me não deu ela licença para o re­velar. E ela sabe que nem a quero trazer para as bocas do mundo, nem ela é mais que as suas irmãs, dispersas naquela fita de chão que tem ao sul a Saunum dos Romanos e ao norte o Monte Maior da Reconquista, e que a poente se debruça sobre a Figueira e a nascente adivinha Coimbra, a sempre desejada.
Não. Não é esta uma língua de terra que claramente fale de coisas espirituais. Até as tradições do povo se foram afogando e enleando na poderosa floração urbana. Por isso, é mais profunda a voz que sobe da terra, como a descarnar todas as raízes e a forçar os homens a reconhe­cerem-se nos sinais.
Não foi Coimbra, a Rainha Desejada, que deu vida a este rincão. Nem a Figueira, nem Montemor, nem Soure. Como tantas outras re­giões portuguesas, esta (feita da minha terra e das suas irmãs) teve por pai um Rei e por mãe uma ordem religiosa. A minha «pátria chica» descende de D. Sancho, o Velho, e do mosteiro de Ceiça, um dos de Cister.
Pelos anos em que nascia António de Lisboa e (diante de Deus e dos homens) crescia e todo se dava eucaristicamente e depois se recolhia em Coimbra e, do esplendor da Santa Cruz, subia à ermidinha de Santo Antão dos Olivais - por esse tempo de poisio das armas e de ar­rotear da gleba-, o Povoador, lá no plano da vontade soberana, deci­dia que estas dunas (ainda hoje recheadas de fósseis marinhos) e esta lezíria de boas águas começassem a dar berços e pão. Ao mesmo tem­po, Santa Maria de Ceiça (que o Destino traiçoeiro havia de tornar, sé­culos volvidos, em barulhenta fábrica de descasque de arroz!), por seu lado actuando no plano próprio das Regras de criação de S. Bento, ia ensinando a gente rude (vinda sabe Deus donde) a lavrar, semear, plantar, podar, enxertar, colher, enceleirar, prever - e, em tudo, orar e amar.
Ninguém veio depois que, destas boas coisas, soubesse tanto. O azeite, o vinho e a broa foram saindo da nossa mesa. Os Vigários de Ceiça foram perdendo o nome (que respondia, na memória dos po­vos, à antiga função de representantes do Abade em cada uma das fre­guesias nascidas do mosteiro) e até fugindo das igrejas e dos povoados rurais, para se concentrarem na sede do arciprestado. Já pela Páscoa santa não corre as ladeiras e as vielas, visitando todos os vizinhos, a Cruz do Senhor. Para encomendar os mortos na hora do beijo com a terra, chega uma estola envergonhada a manchar de roxo um casaco qualquer. Já o povo não guarda (a não ser por acaso) os domingos e dias santificados. Já a bem dizer ninguém pára e se benze ao tocar das Trindades. E as velhas ruínas (ruínas de ruínas, como dizia, de outras, o nosso mestre Hipólito Raposo) do que foi, há séculos, meio celeiro meio convento, e as últimas pedras da última capela de quinta dos fra­des estremecem um adeus ao Sol e, como pó que foram, também elas voltam ao pó.
Lá por dentro da minha igreja (erguida durante a Restauração, para aproximar mais o povo dos campos fecundos, enquanto a Igreja Velha ia ficando apenas um nome na memória dos velhos) já não há sinais das antigas sepulturas. À volta das paredes muito brancas (Deus as conserve!), já as últimas ossadas do antigo cemitério saltaram, ao en­contro dos ossos novos, que, lá ao alto, desde os tempos da anti-Maria da Fonte, dominam o horizonte dos vivos.
Terras por onde passa (a meia hora) a linha dos comboios e, um pouco mais além, a estrada de Lisboa ao Porto não podem ser terras de ceara farta do Espírito. A não ser, meu Deus, que seja certo que o Es­pírito sopra donde quer e para onde quer. E pode ser que lá venha o dia em que novos Povoadores e novas Cisteres, como os outros que despertaram dos séculos de ferro, tragam de novo a bênção. Já nem sei se de azeite, de vinho, de broa e de carqueja, de tojo e de giesta, de caça miúda e de couves mais altas que um homem - mas de Alegria, Senhor... Da alegria que nasce de um coração que aprendeu e com­preendeu a antiga e veneranda regra: «Ora et labora!».

* Texto de Henrique Barrilaro Ruas, in Cultura Portuguesa, nº 2 , Jan. 1982





11 de set. de 2007

FIM DE ESTAÇÃO



*Passou-se o cabo ao vaporzito que punha, no ar delgado e macio, um penacho de fumo esgarçado. O molinete, a dar-que-dar, alou a gata. E o reboque começou a guiar o lugre para a barra.
A essa hora já a praia de banhos formigava de gentana. Era Outubro e ainda centenas de barracas se alinhavam, simétricas, pelo areal, como um acampamento bizarro de um grande exército mourisco – os topos abicados, reluzindo de brancuras. Nas esplanadas cimeiras, faiscavam grandes chapeirões, de lonas vistosas e garridas. Os galhardetes de cores berrantes, que demarcavam as companhias dos banheiros, desdobravam-se com graça. Uma avioneta amarela passeava pelo alto como uma libélula doirada. E a espuma das ondas que se desenrolavam lentas e mansas lembrava uma renda de prata a vestir a orla da saia de lhama de seda, que o mar punha à roda da Figueira.
(…) Corriam mulheres apressadas e lestas acompanhando a rota do barco. Garotada bravia pinchava, paredão fora (…).
O mercado com as marquesas de ferro, o jardim público – mancha de verdura reluzente – o Cais, as duas praças, de jeito pombalino, com seus monumentos, a avenida formosa e ribeirinha ladeada de árvores roliças, tudo foi catado, com acesa curiosidade, por suas pupilas irrequietas.
O lugre desceu até ao trapiche. Arreou o ferro. Despediu o reboque.

*In João Fané, banquista, de Raymundo Esteves, 1942

9 de set. de 2007

* VIAGEM NA NOSSA TERRA

LOURENÇO VIEGAS: (sempre risonho, a gostar) Parece-me que vejo tremer o Cardeal Legado, levantar-se e responder: «Não venho tra­zer-vos riquezas, mas a ensinar-vos a fé vim eu, que dela parece vos esquecestes...».

D. AFONSO HENRIQUES: Não me contive e explodi com braveza: «Calai-vos, Dom Cardeal, que mentis pela gorja! Ensinar-me a fé!!! Tão bem em Portugal como em Roma sabemos que Cristo nasceu da Virgem Maria, que como vós outros cremos na Santa Trindade!

GONÇALO DE SOUSA: Os vossos olhos chamejavam de furor...

LOURENÇO VIEGAS: Toda a ousadia do Legado desapareceu como fumo. E sem afinar com resposta para vos dar saiu do alcácer... (rindo)

D. AFONSO HENRIQUES: Pois foi assim, Lourenço Viegas... Dei a Coimbra um Bispo que me excomungou, porque assim o quis o Papa. Dei-lhe outro para me absolver, porque assim o quis eu.

LOURENÇO VIEGAS: (comentando, a rir) O Bispo Negro!... (afasta-se uns passos, fica olhando a barra e o rio.) Grande e belo estuário, este do Mondego!... (Antão Fernandes, que tinha entrado mo­mentos antes, ficou-se a observar; aproxima-se de Lourenço Viegas, que parece embevecido na contemplação de Rio e Mar...) I

ANTÃO FERNANDES: E vai assim, largo, grande, até Montemor... (Lourenço Viegas só agora repara nele, olha-o, fala depois)

LOURENÇO VIEGAS: Pelo que dizes, conheces bem o Rio Mondego...

ANTÃO FERNANDES: Conheço muito bem, até Coimbra. Tenho passado a vida aqui, nesta grande bacia do Mondego.

LOURENÇO VIEGAS: Quem és tu? O que é que fazes?

ANTÃO FERNANDES: O meu avô - já morreu há uns anos - era piloto aqui na barra do Mondego; eu sou calafate. Trabalho numa das tercenas que constroem e consertam embarcações. Chamo­-me Antão Fernandes. E vossemecê é o senhor D. Lourenço Viegas... (espanto e sorriso deste) Disse-me um rapaz que é carpinteiro de machado e esteve a falar com um marinheiro do barco do senhor Rei D. Afonso Henriques. E até me disse que Vossa Senhoria era Espadeiro... (risos de Lourenço Viegas)

LOURENÇO VIEGAS: Estás bem informado, rapaz... (Transição, rindo) Vejo que conheces bem o estuário do Mondego e o movimento da sua navegação. Mas talvez não saibas que desde os tempos antigos demandavam a foz do Mondego embarcações gregas, romanas, e outras...

ANTÃO FERNANDES: Isso não sabia, não senhor. Mas posso dizer-lhe que vi - há... uma dúzia de anos - (recordando) foi no ano de 1147 - uma coisa grande, que nunca mais me esquece: uma multidão de navios grandes e pequenos, fustas da armada real, galeras, caravelas, abrigadas aqui nesta grande ensea­da do Mondego, para acompanharem as forças navais da Cruzada que ia conquistar Lisboa.

MARTIM GONÇALVES: (Indo ao Rei) Quando Vossa Mercê desejar subir à Abadia.. .

D. AFONSO HENRIQUES: Lourenço Viegas! (para os outros) Vamos então ver a célebre vinha do Abade Pedro! (Saem todos falando alegre­mente, com grande animação)

*Extracto da peça de José da Silva Ribeiro (1894-1990), Viagem na nossa Terra

5 de set. de 2007

O FESTIVAL



* A Figueira - zona de turismo e jogo – viu-se subitamente invadida por um grupo de pessoas que a ela ia, não para jogar, não para ouvir cantar o Tony de Matos, não só para apanhar sol na praia e mergulhar nas águas da baía. Vinham de vários lados e o que os reunia era sobretudo uma semana para ver cinema e discutir cinema.

No campo cultural pode mesmo afirmar-se que é (o Festival de Cinema da Figueira da Foz) uma das raras instituições a projectarem-se internacionalmente, e com ela o nome do país.
(…) Não se pode todavia garantir que o seu percurso tenha sido (…) isento de altos e baixos, de crises e de incertezas, bem como de apaixonadas polémicas. Foi afinal este trajecto algo tumultuoso, por vezes mesmo conflituoso (saudavelmente conflituoso, acrescente-se) que terá provavelmente ajudado a criar uma imagem, definir um estilo, impor uma personalidade.
Em Setembro de 1974 teríamos a 1ª edição do Festival, afastado que foi o espectro da censura que tornava anteriormente irrealista qualquer hipótese de se erguer uma manifestação deste género, com um mínimo de dignidade e representatividade. 1974-1975 são edições de transição, a que se segue um período mais largo (1976-1979), durante o qual o Festival se interroga, em busca de uma identidade, procurando instalar-se em espaço próprio que seja só seu. Isso mesmo parece ter sido conseguido. Os anos de 1980-81 são já de uma certa maturidade (…).
(…) Outro aspecto interessante foram as sessões promovidas pelo Festival em várias localidades da região, bem assim como as extensões do certame a outras cidades: Lisboa, Porto, Coimbra, Aveiro, Guarda, Funchal ….
(…) A partir de 78, sobretudo, mas com maior incidência nos anos de 80-81 o Festival afirmou-se como local de eleição para apresentação pública do cinema nacional (…). O prestígio internacional do Festival foi crescendo, afirmando-se por diversas formas. Depois da presença da FIPRESCI é a vez de a Comissão Internacional para a Difusão das Artes e das Letras pelo Cinema escolher a Figueira para reunir e aí passar a atribuir uma das suas onze medalhas anuais.
(…) O Festival cumpre um papel que de outro modo seria improvável ver-se satisfeito em Portugal : assistir à projecção de obras de países de produção quase desconhecida nos mercados tradicionais.
(…) (A Câmara conferiu) ao Festival a Medalha de Mérito de Ouro da Cidade, uma recompensa merecida pelo muito que o Festival tem feito pela cidade, sua promoção cultural e, inclusive, turística.
(…) Impensável será agora parar a máquina, privar o País de um acontecimento de tamanha repercussão interna e externa.

* Lauro António, Dez anos de Cinema em Festival, Figueira da Foz, 1982
O FICFF fez 31 edições e terminou em 2002.

3 de set. de 2007

ANTROPOFAGIA NO CABO MONDEGO


*Assim é nossa convicção que os dados recolhidos até ao presente nas estações da serra do Cabo Mondego não tendem a demonstrar por qualquer modo o costume do canibalismo entre o povo ou tribo que na época neolítica habitou por estes sítios; antes mostram o contrário, isto é, que esse selvagem, nosso antepassado, pobríssimo de tudo, respeitava e encerrava os mortos, cercando-os de todas as seguranças ao seu alcance, para que a paz do túmulo não fosse perturbada nem pelas profanações dos homens, nem pelos animais faminto
Tão grande era este seu empenho que até os mais pequenos interstícios dos suportes das antas eram cuidadosamente vedados com lascas de pedra!
E com que piedade ele depositava junto do cadáver todo o necessário em armas, utensílios e alimentos, para que os entes queridos pudessem seguir a grande viagem, sem sofrerem privações e quiçá para continuarem no seu sonhado Olimpo a vida deste mundo!
É que tudo isso podia ser consagrado apenas aos restos ósseos daqueles a quem tinham a bestial crueldade de devorarem as carn­es?! Os fragmentos de ossos careciam de antas bem vedadas, de armas, de utensílios, de comida? Onde já se viu o canibal nutrir aquelles sentimentos de ternura pelos ossos das suas vítimas?
É preciso sermos razoáveis tanto em ciência como em tudo mais Avançar a uma proposição, quando todos os factos protestam contra ela, é substituir o arbítrio à lógica, e desviar a ciência por veredas tortuosas, onde os prejuízos disputam a palma ao erro.

* António dos Santos Rocha, “A questão da antropofagia nas estações neolíticas da serra do Cabo Mondego”, in Memórias e e explorações arqueológicas, Univ. Coimbra, 1975.

Santos Rocha, (foto) (1853-1910) arqueólogo eminente e jurista de vulto, desempenhou diversos cargos públicos; fundou o Museu Municipal e a Sociedade Arqueológica Figueirense (V. post, Novembro de 2004). Neste texto, o arqueólogo figueirense refuta, em resposta a certa "crítica", conclusões como a seguinte: "que o canibal da serra do Cabo Mondego misturava o cérebro do seu semelhante a alguma bebida, provavelmente no próprio crânio, que era em seguida levado ao fogo e depois partido para lhe explorar os recessos ósseos".

1 de set. de 2007

JOAQUIM NAMORADO (1914-1986)


Partem navios
E chegam navios
De todos os pontos cardeais,
Só eu fiquei
Sonhando os orientes
No cais.

Outros partiram…
- Tantas vezes me chorei perdido
E vencido me arrastei
No sabor das tempestades e dos fados…
Tantas vezes fui o herói da aventura,
O navio naufragado…
E sempre ressuscitei
No cais.

Que em mim vive esta ânsia
Sempre nova
Da largada.

Joaquim Namorado, Aviso à Navegação

31 de ago. de 2007

*DOMINGO À TARDE NA PRAÇA NOVA


Ao longo da Praça Nova passeavam com um andar compassado, n’uma demorada regulada, grupos de empregados; logistas; negociantes de vinhos e proprietários paravam ouvindo, com attenção de sensatez e assentimento insuspeito, algum que fallava e mostrava gestos commedidos, pautados, de quem expõe uma ideia ou quer convencer. Um outro banco era occupado por famílias do povo, operários, velhos comerciantes aposentados, na passividade; pelas raparigas de trabalho com os seus trajes aceiados, do domingo, de cores vistosas, e creadas de gente rica guardando as creanças que brincavam, saltavam na calçada e nos bancos. A maior parte dos estabelecimentos em torno estavam fechados. Os caixeiros das duas lojas de moda, à esquina da rua das Flores, à porta, em pé, aborreciam-se, tinham bocados de conversas, dirigiam chalaças a alguma rapariga transeunte, ou a qualquer moça de cosinha, que voltava da fonte, ajoujada, vermelha pelo pezo do caneco cheio. No Café Central entravam e sahiam de quando em quando artistas, caixeiros, negociantes novos, no gasto domingueiro da chávena de café e da genebra, ou extravagancia das partidas de bilhar. Uns poucos barqueiros, catraeiros e algarvios dos cahiques de pescaria, vinham caminhando devagar, em direcção à taberna da esquina da rua Nova, falando soturnamente com o cachimbo ao canto dos beiços e as mãos atraz das costas. Da Ladeira do Monte desciam dois marinheiros inglezes bêbedos aos zigs-zags estonteados, cantando com uma voz berrada, mostrando os punhos fechados em attitudes de dar murros, seguidos e cercados pela garotada, que às vezes dava fugidas curtas, inesperadas, e gritava em apupos de boccas escancaradas.
Em baixo, no novo caes, quasi em frente da Praça parava o carro americano, despejando a gente que vinha de Buarcos, da praia e do Bairro Novo. Na esplanada ao pé da rampa, alguns serranos das barcas da Foz do Dão estavam encostados a umas pipas vasias. Um zelador municipal, o Caras Altas, policiava passeiando vagarosamente no lagedo da casa do Tribunal, olhando para uma parte e outra com uma posição lorpa de cabeça. Algumas famílias que habitavam as casas da Praça, enfastiavam-se à janella, com os braços pousados no parapeito, ou com a cabeça pezando sobre uma das mãos. (…)
Para baixo via-se uma pequena porção do paredão novo, as partes altas do theatro Príncipe D. Carlos, o guindaste das Obras Públicas pintado de encarnado, a doka onde oscillavam diminutamente amarados os hiates do costeiro, as rascas de Peniche, os cahiques do Algarve, os bateis dos carregamentos do porto e os barcos de transporte do Mondego. Depois, mais além, alastrava-se a largura esverdeada do rio, às vezes cortada pelos botes; avistavam-se os navios de maior lote, ancorados na estacada, com a bandeira da respectiva nacionalidade içada no topo do mastro da popa; mais adiante as marinhas do sal, d’um tom negro, onde se distinguiam parte dos depósitos rectangulares da água do mar; as casas caiadas, espalhadas irregularmente, das povoações de Lavos, Carvalhaes e Regalheiras, rodeadas de pinhaes e de uma vegetação escura; as habitações acanhadas e os moinhos da Galla; alguns denegridos casebres de madeira da Cova e uma grande porção do areal do Cabedello. A uma grande distância avultavam as estaturas enormes, d’uma cor pesada e triste, dos montes que se alongavam para as bandas de Leiria, apresentando uma perspectiva esfumada, um pouco nevoenta, que se ia azulando n’uma graduação insensível para o alto, e na direcção da Vieira branquejava uma larga e comprida tira da costa do sul.

*Gaspar de Lemos, do romance inédito “A Filha do Senhor Silva”, transcrito do Almanach da Praia da Figueira para 1878-1879, 1º ano, p.168-170, rep. em "Ruas e Praças da Nossa Terra II", de Isabel Simões, in Revista Litorais, nº 4, Maio 2006.


28 de ago. de 2007

GASPAR SIMÕES EM "A BOLA"



*O Dr. João Gaspar Simões** ingressa no «Team» de «A BOLA»

O team de…A Bola vai alinhar mais um nome – um nome grande das letras portuguesas. Trata-se do dr. João Gaspar Simões – crítico, ensaísta, romancista – que iniciará, a partir do próximo número, a sua colaboração neste jornal.
A presença do ilustre escritor e crítico literário num jornal desportivo constitui, só por si, motivo de geral satisfação. O dr. Gaspar Simões, aliás, como todos os intelectuais contemporâneos, aqui e lá fora, interessa-se pela marcha dos acontecimentos desportivos e lê os jornais da especialidade (…)
No próximo número, o dr. Gaspar Simões iniciará a sua série de “Cartas a um jovem desportista que se interessa por cultura”.
Vale isto por dizer que o dr. Gaspar Simões, todas as quintas-feiras, se dirigirá aos desportistas portugueses para quem não são supérfluos os problemas do espírito, esclarecendo-os, orientando-os, no sentido de que a sua prelecção pelos acontecimentos desportivos seja valorizada por mais directo contacto com a cultura.

*Jornal A Bola, 20 de Março de 1950
**João Gaspar Simões, Figueira da Foz, 1903 - Lisboa, 1987

27 de ago. de 2007

LAVOS CONCELHO



* (…) O período em que Lavos foi cabeça de concelho, com câmara de 5 vereadores na reforma Cabralista, presidente da mesma, administrador, substitutos destes, escrivão ou escrivães, juiz ordinário (não estando provado por escrito, ao que sabemos, que tivesse sido alguma vez “de fora”…) etc. foi em grande parte preenchido pela forte depressão económica e política que depauperou o país durante cerca de 50 anos. As invasões francesas, a exploração inglesa, as guerras civis, a emancipação do Brasil, foram as causas diversas que deixaram a nação exangue – situação a que só a “Regeneração” deu alento e vida.
E como se não tivesse tudo isto a atrofiar qualquer impulso de progresso económico na região, o último decénio da existência de circunscrição concelhia de Lavos foi manchado pela prepotência de um administrador facínora: o Joaquim da Marinha, cuja tenebrosa memória não queremos aqui recordar.
A freguesia tinha, em 1758, 422 fogos com 1602 pessoas. Era termo de Montemor, da comarca de Coimbra, e, conforme informação paroquial coeva “… nas sisas é cabeça a Vila do Louriçal onde pertence”.
Nesta época ainda eram enviados barcos de 3 e 4 moios de sal das marinhas de Lavos para Soure.
Quando a Figueira ascendeu a vila em 1771, ano do nascimento de Fernandes Tomás passou para a sua comarca e concelho. Alguns anos ela própria foi elevada a concelho, voltando à comarca de Coimbra. Em 1836 a grande reforma concelhia de Passos Manuel, promovendo a descentralização e pondo cobro à desordem divisional que reinava neste sector da administração pública, extinguiu (…) 498 concelhos dos 828 existentes e criou 21 novos municípios. Lavos foi um dos eliminados e o Paião um dos que então nasceram.

* In, Cap. João Mano, Lavos, nove séculos de história, CEMAR e J.F. Lavos, 2000.
Lavos viria a integrar com o Paião, em 1842, um novo concelho. Em 1853 foi extinto, passando a pertencer à comarca e concelho da Figueira. Maurício Pinto faz menção a um Código Municipal ou Colecção de Posturas do Concelho de Lavos aprovado em 1844 e de que foi último relator Francisco de Almeida Ramalho

25 de ago. de 2007

OS BURROS QUE IAM A COIMBRA

Era uma vez um homem que alugava dois burros que tinha para irem a Coimbra levar e trazer estudantes.
E dizia ele:
- Ora vejam lá como são as coisas deste mundo! Todos os anos vai gente a Coimbra formar-se e todos os anos de lá vêem formados, só os meus dois burros vão lá quase todos os meses há uns poucos de anos e ainda não saíram doutores!

Do Folclore da Figueira da Foz, rec. Cardoso Martha e Augusto Pinto, 1913

24 de ago. de 2007

24 DE AGOSTO: FERNANDES TOMÁS E O SINÉDRIO



A 24 de Agosto de 1820 a guarnição militar do Porto dá início ao movimento que haveria de liquidar a monarquia absolutista. Por trás desta iniciativa estava o Sinédrio.

Criado em 1818, por impulso de Fernandes Tomás – que lhe escolheu o nome, o qual significa Assembleia e que reunia em todos os dias 22 na Foz do Porto, em casa de Ferreira Borges – o Sinédrio começou por ser composto por dez elementos: comerciantes, altos funcionários e militares.

Com a sublevação da Galiza e a proclamação da Constituição de Cádis o Sinédrio intensificou a sua actividade conspiratória, a ele se juntando altos comandos militares. O golpe foi preparado para o dia 29 de Junho mas gorou-se por ter recuado no seu apoio o Coronel António Teixeira de Barros. Entretanto, o ministro espanhol D. José Maria de Pando contacta Fernandes Tomás, prometendo apoio para a revolução em Portugal, mas tendo por condição uma União Ibérica. As crónicas falam de uma reunião à meia-noite, no jardim de Cedofeita, onde Fernandes Tomás, perante Ferreira Borges e Francisco Gomes terá dito: Perdermos a nossa nacionalidade! Nunca! Nunca!

Em Julho, Tomás parte para Lisboa em busca de apoios. Ao movimento adere D. Francisco de São Luís, patriarca de Lisboa, que leva para as suas hostes o Coronel Barros, de Braga. Quando Fernandes Tomás regressa ao Porto, o Sinédrio reúne e marca a data de 24 de Agosto para despoletar o movimento. Tomás reúne-se com o Brigadeiro Silveira Pinto – militar prestigiado no norte do país - para redigirem o manifesto, embora Tomás levasse o documento já escrito. Silveira recusa assinar, referindo que só assinaria um que trazia consigo no bolso. A reunião dá em nada.

Fernandes Tomás convoca de novo o Sinédrio e dá-lhe conta do impasse. O Coronel Sepúlveda é escolhido para reunir com Silveira e trazê-lo à razão. Este vem a assinar, no dia 22 de Agosto, um novo manifesto, desta vez da lavra de Ferreira Borges.

O Sinédrio dissolveu-se no dia 24, com o estalar do movimento e com a entrada de alguns dos seus membros para a Junta Provisional do Governo.

O PORTO E A BARRA DA FIGUEIRA DA FOZ



Um texto de 1947 onde se denota como, às vezes, a capacidade de fantasiar ultrapassa largamente a provável realidade das coisas.

* Em 1916, na festa de colocação da primeira pedra para o Casino do Estoril, o Almirante José Nunes da Mata, professor da Escola Naval, afirmou que o porto de abrigo principal do país, com características até de internacional, deveria ser o da Figueira.
Possível é, pois, que o porto da Figueira venha a ser procurado um dia pela navegação turística, compreendendo também a sua moderna modalidade, visto existir aqui espaço definido para a construção de um aeroporto no braço sul, margem direita, em terrenos que são hoje praia do rio e que tem por tôpo a ponte sul, recentemente construída.
Que mundo novo os progressos da aviação virão abrir num futuro não muito longínquo, sob este aspecto!
Sob o ponto de vista militar muito conviria que o porto da Figueira estivesse em condições de abrigar algumas unidades da nossa Marinha de Guerra, como, por exemplo, submarinos e canhoneiras necessárias para a defesa do país e a fiscalização da pesca.
Poderia até vir a ser um porto franco, devido à sua posição no centro da costa metropolitana, com admiráveis ligações ferroviárias e rodoviárias (…) Com o porto crescerão os negócios, aumentarão as horas de trabalho, multiplicar-se-ão as fontes de receita.
(…) Um importante movimento, relacionado com o tráfego, virá a manifestar-se e já se pode deduzir das estatísticas.
Está integrado nas redes ferroviárias da Beira Alta, da Companhia Portuguesa – hoje unificadas.
(...) Fica a umas escassas dezenas de metros do Mar, o que não acontece com alguns portos de outras cidades, que ficam a quilómetros, sendo evidente que é muito mais fácil manter dragado e fundo um pequeno canal nestas condições, do que um de grande extensão, podendo ainda afundar-se a barra, rompendo-se a rocha do fundo.
(…) Toda a região demarcada do Dão, terá no porto da Figueira, que a dará a conhecer ao mundo, a melhor saída para os seus reputados vinhos (…)
(…) As obras do porto são necessárias, para que a indústria do sal reconquiste a sua posição (…)
A Figueira atingirá então o seu apogeu, a sua potente expansão, e a praia, de tipo nobre e encantador, fará ainda mais a sua fortuna. É esta a grande coluna do seu alicerce, da sua actividade fecunda, que lhe dará âmbito para ter muitas ideias novas, mais liberdade no trabalho e prestígio para o Estado.

* In, Jardim, José, As grandes linhas de uma cidade, Figueira da Foz, 1947

22 de ago. de 2007

MAURÍCIO PINTO (1884-1958)



Maurício Pinto fez o curso comercial na Figueira da Foz e tornou-se empresário. Investigador, historiador, escritor, actor dramático, apaixonado do saber e das coisas da Figueira da Foz, Maurício Pinto foi uma figura marcante do seu tempo. “Pessoa de tendências marcadamente liberais e que mantém pelos seus patrícios mais ilustres um verdadeiro culto”, assim o definiu Salinas Calado.

Republicano convicto, foi vereador da Câmara Municipal logo após a instauração da República, funções que viria a repetir mais tarde. Maçon, da Loja Fernandes Tomás, foi também fundador do movimento Rotário na Figueira da Foz.

Apaixonado da Arte de Talma criou o Grupo Dramático Figueirense e o Grupo dos Simples tendo integrado o grupo cénico do Ginásio Figueirense. Experimentou, como actor, as tábuas do desaparecido Teatro Príncipe.

Foi Provedor da Misericórdia da Figueira e teve responsabilidades directivas na associação Comercial.

Colaborou muito com a imprensa e era amiúde convidado para ser palestrante sobre os mais diversos temas. Camiliano, coleccionava materiais respeitantes ao escritor romântico, tendo cedido o seu espólio para exposição nas comemorações do centenário de Camilo. Deixou várias obras, entre elas, talvez a mais conhecida, escrita em colaboração com Raimundo Esteves, “Aspectos da Figueira da Foz”. Homem de livros, doou à biblioteca Pedro Fernandes Tomás os seus papéis.

TORRES DE BUARCOS - ALMENARAS E FACHOS



* Segundo Viterbo e Pinho Leal, as almenaras eram fogueiras convencio­nadas, que ardiam de noite nos altos dos muros, das torres e em atalaias, isto é, em determinados locais elevados, destinadas, principalmente, a darem sinal de rebate pela aproximação do inimigo.
Eram os telégrafos doutros tempos.
Um dos pontos escolhidos para o fim referido era o marco geodésico, existente muito perto da capela da Senhora da Encarnação, construído sobre um cunhal do antigo Castelo, a que um documento de doação feito por D. Afonso III aos frades de Santa Cruz, existente no livro nº 2 dos Direitos Reais - Arquivo Nacional - citado por Goltz de Carvalho, chama «Torre de Buarcos».
Esta construção, que algumas vezes subimos pela sua estreita e íngreme escada de degraus, meio desmantelados, para apreciarmos o belo panorama que de cima se disfruta, tem doze metros de altura.
As almenaras deram o seu lugar aos fachos, por estes serem mais aperfeiçoados. Os fachos, que eram enormes archotes, prestaram óptimos serviços de farolagem, para aquela época, orientando a navegação nas costas e entrada nos portos.
Havia «Companhias do Facho», compostas de oficiais, sargentos e soldados, sendo notáveis os serviços desses corpos do exército na Guerra Peninsular.
Um auto da Câmara da Figueira refere-se a duas requisições desses fachos, feitas pelo alferes da 8ª Companhia de Ordenanças, António Maurício de Oliveira, da Figueira, e por outro oficial da mesma patente, Bento Gonçalves Amaro, de Redondos. .
A Câmara aprovou que lhes fornecessem: - duas barracas, dois mastros de batel, dois moitões com adriças, uma carrada de mato, uma bandeira, um lampião e o azeite preciso, sendo estes fornecimentos pagos pelo município.

* texto de Maurício Pinto, In Notícias da Figueira - 13-12-1941

21 de ago. de 2007

POETAS FIGUEIRENSES

Caía a tarde. A`noite desse dia
No meio duma orgia
Nero, vestindo a sirma e o coturno
E lendo uma ode sua, declamava:
- Ó venturosa Roma, outr`ora escrava
Ò geração de Eneias
Cujo sangue lateja em minhas veias!
Como te faz feliz o meu governo!
Por Júpiter eterno,
Eu fiz voltar a idade de Saturno.

Cardoso Martha, parte do poema “A Cordaz diante de Nero” , dedicado a Raul Brandão

O MAR DE FANÉ



* A franja das espumas lambia a areia grossa e pedregosa. Sucediam-se macias corcovas de água que iam rasoirando o verde glauco. E, para além, o mar – o mar sem fim, o mar que era o seu enlevo, a sua paixão, o senhor do seu querer e do seu sentir…
Que lindo estava o mar! Nem o céu – dum azul ferrete onde boiavam nuvens de algodão em rama – se lhe podia comparar.
Lisinho como um espelho!
Com que alvoroço se sentiu erguido, passado de braços em braços até se sentar no pináculo da proa, junto à cruz das bordas.
Mal passou as portas, Buarcos rasgou-se-lhe na enseada. O casario branco rebrilhava. Fulgiam vidraças onde a luz acendia em labaredas. A capela da Senhora da Encarnação, no topo, rutilava, benzida do primeiro oiro do sol. Depois, a lomba da serra verdejava de pinheiros que iam escalando os morros até à Bandeira.
Içaram a vela. Ao cambar, o cordame rangeu, o barco empinou-se, tombou ao carrego do pano inflado e a quilha entrou a varar a água deixando uma esteira luzidia.
João tinha as pupilas estáticas num deslumbramento!
Já a ponta do Cabo Mondego – unha negra da terra – se sumira no horizonte. Agora só a concha do céu, um penacho de fumo dalgum vapor que o assava muito longe – e o Mar!
(*) De João Fané, banquista, de Raimundo Esteves, Latina ed, 1942

19 de ago. de 2007

O CAMINHO-DE-FERRO



A 3 de Agosto de 1882, D. Luis I, acompanhado da rainha, D. Maria Pia de Saboia e de vários ministros do seu governo, veio à Figueira da Foz inaugurar o troço que ligaria a cidade à linha do caminho-de-ferro da Beira Alta. A primeira pedra dos trabalhos tinha sido lançada em 10 de Agosto de 1880. Coube à Figueirense, à Dez de Agosto e à banda do Paião abrilhantar a cerimónia, tendo actuado igualmente a Banda da Infantaria 18 e a Banda Conimbricense.
As autoridades foram recebidas na Assembleia Figueirense e fez-se a bênção das locomotivas e um “Te Deum” na igreja matriz. O almoço foi oferecido pelo Município, presidido então por Francisco Lopes Guimarães e teve lugar na Casa do Paço.

O processo iniciara-se em 1874, através de uma solicitação feita pela Associação Comercial à Câmara dos Deputados pedindo a ligação da Figueira à linha férrea nacional. Em Julho de 1878 foi aberto concurso tendo aparecido uma firma concorrente, a Societé Financière de Paris que, para além da construção ficaria a explorar a linha por 99 anos.
Em Janeiro de 1879 constituiu-se a Companhia dos Caminhos-de-ferro da Beira Alta, tendo os franceses cessionado a esta os direitos que lhe tinham sido outorgados.

A linha passou a trazer até à Figueira produtos de exportação, como o vinho, as aguardentes e a madeira, bem como outros para consumo local, como a batata, a castanha, o azeite e cereais. Da Figueira para o exterior saía, entre outras mercadorias, sal, cal, carvão, peixe seco e fresco e vinho. O movimento de passageiros era escasso – metade do da linha do Oeste (*). A ligação teve uma importância crucial no desenvolvimento do turismo figueirense.

Grande empenho em todo o processo teve Saraiva de Carvalho, Ministro das Obras Públicas, governante que obteve da comunidade figueirense o reconhecimento pela sua dedicação.

(*) A linha do Oeste chegou em Julho de 1888 e em 1889 fez-se a abertura do ramal entre a Amieira e Alfarelos.

17 de ago. de 2007

UM MENINOZINHO VINHA VINDO...


*Um meninozinho, João Balãozinho, vinha vindo em seus passos travessos, de cumprir um recado na loja, satisfeito, con­sistido de trazer em cada sua mão, engarrafado, um litro de vinho. Que era mister, em assinadas ocasiões, ter de ir-se por essa malvasia, a comprá-la, tão sempre desexistida foi ela das terras gandaresas, que não a produzem, sáfaras de areia e vento, leiras magras de chorume para imprir-se um plantio de bacelo. Há que, portanto, na devida maré, e quando é o caso, prover ao devido em afazeres diversos como: ser o dia de cozer­-se a broa, ou trazer gente de fora numa tardada, ou vir um alguém de visita, inesperado ou não, e ter de beber-se uma pinga. Que é, neste caso derradeiro, o que mandam as regras e usos de bem receber. Ah!, e a Gândara é hospitaleira.
Lá vinha vindo, pois, esse meninozinho com as duas garrafas bem aviadas, porque a mãe, no azo, já trazia o lume ao forno. O que, era, portanto. E havia de chegar um tal Maiorqueiro, ao cerrante da noite, fechar o negócio do boi de cobrição, que ficou de remissa da feira de Gatões. Eram dois os motivos por que, então e portanto. João Balãozinho vinha transportando essas duas garrafas, pejadas que nem, em cada sua mão, equilibrado no peso do corpo. Vem por carreiras e travessias de pinhais, o chão descarnado, e em cujos e quais pode muito bem dar-se uma topada. Porque há sempre uma raiz imprevista e treda, celerada, ou uma cova-falsa igualou tão mais.
(…)
Pois lá vinha vindo, cumpridor, esse meninozinho João Balãozinho; lá vem ele em suas alegrias ladinas, mas ainda no seu prazo, miúdos passos, ou conforme, porque há o parar e olhar, voou o garrancho do seu poiso, ou gaguejou a pega tagarela. E há que seguir o rumo e arte do peneireiro, ou escutar, atentivo, a trombeta do moquenco pontual, algures, rosnento e grosso, que é para distinguir: se é o burro do moleiro Zé Maluco, ou o das Quintaloas, ou a burra nova da tremoceira Maria Umbelina. Que vos parece?
(…)
João Balãozinho, que num ponto da sua viagem havia de cruzar-se com Manuel da, Fanata, o dos burros, o qual vai prendê-los nalguma resteva, ou num vaIado de sil­vas, ou num combro inventado para relvar-se. E era um casal, os cujos que iam levados à corda, o burro e a burra, que o meninozinho bem viu os escritos lá deles. Pois ficou-se parado a olhá-los, que lá iam indo, indo-se, subalternos e tão submis­sos, campassados. Aonde é que sítio ia o Fanata prendê-los?
Esse era um menino muito interrogativo, João (…)
(…)
Porém, quando. Estão a burra e o burro em seus cios transparecidos, tão assim, e nem as cordas não foi preciso esticá-las até finalmente; e já se davam em cheiraduras e mimos de beiços, espirravam estrondos, aluadões, a mostra­rem os dentes todos que tinham. Espoldrinhavam a sua ale­gria, amorudos, desencabrestados, a resteva era o seu paraí­so. Quem passasse havia de apreciar, quem é que não?, estes trafegos. E sobretudo, ah!, e sobretudo. Porque o burro tinha uma grande maçaneta a nascer-lhe na pele da barriga, ou era um unteiro, que crescia, e crescia;
(…)
E ouve-se o carro do Toino Quintaneiro, de regres­so a casa, gemendo a falta dum untozinho nas garridas de cada coicão. O que é mais um sinal, outro, de estar a luz por um triz, com um pé no dia e o outro já dentro da noite.
Foi quando no interim e átomo do tempo, irremediável. Foi quando. O burro atirou as ambas patas para cima de quem estava a pedi-las, jogadas à bruta, escarranchado ao pino, gi­gante. Momento penetrante, oh! O chão estremeceu por todo ele, abalado inteiro, e a burra atreveu-se com todo o peso e poder do seu semelhante. A quanta brutidade e fragor!
E nunca não soube-se onde o meninozinho estava com os pés: se assentados no firme, estando espasmecido no meio do carreiro; ou se ele estava embarcado nalguma nuvem, transplantado, por outros mundos remotos. João Balãozinho estava com as mãos caídas dos braços, assombrado, e das cujas e quais, intactas e cheias, pendiam as garrafas de vi­nho. Tivesse-as ele posto no chão, ao alto, que ficavam res­guardadas dos mil perigos à vista. Mas (…)
No meio do caminho, hem! Tinha uma pedra e topada, estardalhaço, o vinho e vidro em mil pedacinhos.
* Idalécio Cação, Os pés e as mãos, ret. de O Chão e a Voz, ed. Escritor, 1998

16 de ago. de 2007

UM SECRETO ENTARDECER



A Figueira dos meus tempos ainda é a do carro americano, esse brinquedo inefável tirado a um par de mulas e que desenhava um jubiloso percurso desde o largo fronteiro à estação (havia um túnel junto ao Ténis Clube) até um pouco para além de Buarcos.
Casinos eram vários: o Europa, hoje parece que pensão, onde todas as noites se exibia um excelente quarteto de que era pianista o compositor Ruy Coelho; o Espanhol, na actualidade Café Nicola, com atracções de vário tipo; o Oceano, animado pelo conjunto do hábil pianista figueirense de apelido Mesquita, mais conhecido por Mesquitinha, pai de 6 ou 7 filhos e de temperamento bastante remexido e ambíguo; por fim, o Grande Casino Peninsular, que atingiu por essa época os momentos sem dúvida mais prestigiosos de toda a sua história.
Dirigido por Ernesto Tomé e Arménio Faria, figuras ímpares de largo espírito criativo, lúdico e bem-humorado, ali se efectuavam as sete voltas ao casino (réplica juvenil de certos feitos do ciclismo local); e essas admiráveis festivas garraiadas infantis, com garraios autênticos, e os rapazinhos vestidos a carácter (lembra-se, Dr. Joaquim de Sousa?), enfiados em nervosos cavalos de pasta, prontos, os corcéis, a entrarem ao som de um paso doble nobremente na arena.
Pelo menos uma vez por semana havia música de concerto pela orquestra de Salão regida pelo notável violinista René Bohet. E música militar no coreto do Jardim. Onde, santo Deus, tudo isto já vai.
A Figueira desse tempo era uma cidade culta. Exigente, cosmopolita e viva, cidade aberta e atractiva, muito procurada por espanhóis da raia e da meseta. Muitos outros estrangeiros vinham para a então “Rainha das Praias” em busca de sol, iodo, mar e diversões.
Personalidades como Vitorino Nemésio, de quem tive a honra de ser amigo, ali passavam com a família a época balnear, frequentando o então querido Professor a Farmácia Gaspar, na rua da Liberdade, onde volta e meia se reunia com Joaquim de Carvalho, João de Barros, Mesquita de Figueiredo, Gaspar Simões e outras imperecíveis figuras tutelares.
Impossível esquecer as garraiadas de beneficência, com o David Viana, o Boa Nova, o “Charlot” e outros mais, todos de branco (…)
Sim, esta era a minha cidade, a minha rara cidade de outrora, pequeno burgo de ruas de vento e palmeiras, lugres, caiaques, gaivotas, cais solitários e marés vivas.

Luís Cajão, Um Secreto Entardecer, ed. Escritor, Lisb. 1998

15 de ago. de 2007

JOSÉ BENTO PESSOA (1874-1954)



* José Bento era o ídolo dos figueirenses. Tinha já batido o record mundial e derrotara grandes campeões. Os seus patrícios não toleraram a vitória de Dionísio (1). Os jornais da época insurgem-se contra os exaltados que não souberam conter-se.
Pode dizer-se que o ciclismo ginasista de então nasceu, viveu e morreu com a actividade de José Bento (2). A carreira do figueirense é uma página única do desporto nacional.
De 1892 a 1905, com um interregno de 1902 a 1905 correu em Espanha, França (Paris) Bélgica (Gand), Suiça (Genebra), Itália (Turim) Alemanha (Berlim) e Brasil (Pará). Em Espanha disputou provas em Vigo, Corunha, Sevilha, Bilbau, Salamanca, Ávila e Madrid. Na capital de Espanha esteve continuamente oito meses e, em Paris, dois anos. Em Maio de 1897, na inauguração do velódromo de Chamartin, Madrid, ganhou a prova internacional e bateu o record mundial dos 500 metros, que pertencia a Jacquelin, baixando o tempo de 34,6 para 33,2 segundos.
(…) Conquistou grande número de medalhas e objectos de arte, e entre os prémios pecuniários que obteve conta-se o que ganhou no Pará – 10 contos fortes.
(…) Quando as notícias das vitórias chegavam à sua terra, o entusiasmo dos figueirenses expandia-se em manifestações ruidosas e festivas: saíam as filarmónicas, a fachada do Teatro Príncipe iluminava, havia marchas, au flambeaux – uma loucura. E quando o campeão vinha descansar – meia Figueira ia festejá-lo. Chegou a ir da estação do Caminho-de-ferro para casa aos ombros dos mais entusiastas. Isto aconteceu, por exemplo, quando, logo a seguir à derrota de José Bento, nas festas do S. João de 1901, ele regressou do Porto, onde vencera duas vezes José Dionísio no velódromo Maria Amélia.
(…) Em 1 de Setembro de 1901, os clubes ciclistas do país prestaram uma homenagem ao grande campeão. Para lhe ser entregue uma mensagem e um brinde, organizou-se a estafeta ciclista Lisboa-Figueira.
José Bento Pessoa foi não só um campeão mundial, o maior ciclista de velocidade do seu tempo, mas também um treinador competente.


* In, Cardoso, J. Sousa, Ginásio Clube Figueirense, subsídios para a sua história (1895-1944), Figueira da Foz, 1944

(1) José Maria Dionísio, de Viseu, bateu José Bento Pessoa na grande corrida de S. João de 1901, no improvisado velódromo da então rua do Príncipe Real (da República) e Fernandes Tomás.
(2) Outros ciclistas da altura, companheiros de José Bento, eram: José de Araújo Coutinho, Albano Custódio, Constantino Pessoa, Manuel Simões Barreto, Adolfo Rodrigues, António Pestana, José Novaes, António Reis, Afonso Rainha, Rodrigues de Oliveira, António Mesquita, Joaquim Alves Fernandes Águas.

14 de ago. de 2007

POETAS FIGUEIRENSES

Começo de Confidência

Sentemo-nos aqui, n`este sombrio
Recanto onde a silveira vive presa.
Em trez léguas d`aqui em redondeza
Vemos os campos…os casais…o rio…

Tu, que andaste de mim tão erradio
Porque, segundo a voz da aldeia reza,
Tinhas queda também p`rá camponesa
Que a cabeça me poz em desvario;

Tu vaes agora ouvir, porque decerto,
Se tens amado, entenderás melhor
Toda a história das penas que padeço.

Ouve-me bem; e diz do teu acerto
O que é que pensas: - Uma vez Leonor…
- S`tas attento a ouvir-me? – Então começo…
……………………………………………….

1904 Sant`Iago Prezado

PETRÓLEO FIGUEIRENSE

Narra Manuel Gaspar de Barros nas suas Memórias (1) que em 1917 “quando se abriu um poço de água na Rua das Lamas (…) no palácio que fora do Conde de Verride, o Dr. João Santiago Prezado, poeta e diplomata, apareceu petróleo a sobrenadar na água”.
Refere que Prezado encomendou dois estudos a um professor do Técnico de seu nome Fleury, o qual investigou as regiões do Mondego inferior e a região situada “entre os paralelos de Cantanhede e Alcobaça”.
O Prof. Fleury recomendava sondagens a fazer em Verride e nos Vais, as quais não tiveram depois andamento.
Mais tarde, já nos anos 40, a Companhia de Petróleos de Portugal (capital do Estado português e de um empresário nórdico) – ainda segundo Manuel Gaspar de Barros – fez sondagens em Verride e ali, a poucos mais de mil metros, “apareceu algum petróleo”, mas a CPP tinha poucos meios e as sondagens foram pouco profundas.

Fleury também assinalou petróleo no Cabo Mondego e neste local “os belgas da sociedade Foraki (…) parece que o encontraram nas sondagens que fizeram na procura do carvão”.
Manuel Gaspar de Barros refere ainda que o Conde de Castellane, judeu exilado na Figueira aquando do grande conflito europeu, lhe terá assinalado o seu feeling de que haveria petróleo no Cabo Mondego. O conde era um “experimentado pioneiro do Cáucaso”.
Já nos anos 70 voltaram a fazer-se sondagens. O ouro negro foi encontrado mas não em quantidade que justificasse a sua exploração comercial.

(1) Manuel Gaspar de Barros, filho de Manuel Gaspar de Lemos, in Memórias, Ed. do autor, 1982

A ÁGUA



Em 22 de Agosto de 1889 a água correu pela primeira vez nas canalizações das casas da Figueira da Foz. Três anos antes a Câmara tinha adjudicado a concessão do abastecimento de água e gás à firma inglesa Kirkham e Hersey (V. n/ post Dezembro, 2004, sobre a iluminação a gás) a qual cedeu direitos à Anglo-Portuguese Gás and Water Cª.
Sabe-se que António Santos Rocha, aquando do seu primeiro mandato como presidente da Câmara (1878-1880) fez contactos no sentido de se estudar o abastecimento de água à cidade e que um seu antecessor, João José Costa, em 1864, chegou a colocar a hipótese de aproveitar os caudais da vertente sul da Serra da Boa Viagem; certo é, também, que já nos finais do século XVIII a resolução do problema tinha sido tentada.
Em Agosto de 1889, a água, captada em Tavarede (Prazo), corria em mais de 400 casas figueirenses. Rezam as crónicas que não era de grande qualidade.
A população mais pobre não a podia pagar e continuava a valer-se das fontes disponíveis: da do Largo da Fonte e da Várzea (não sabemos se se mantinham activas as da Bica e a de Stº António), embora estas estivessem também inquinadas.
Em trabalhos efectuados nos finais dos anos 80 (há 20 anos), técnicos do Museu Municipal estudaram duas antigas galerias de abastecimento de água (1) (de finais do séc. XVIII), uma com nascente na mata de Stº António e outra numa mina no Casal da Rata, a qual descia a rua dos Combatentes, possivelmente até próximo da praia da Reboleira, servindo o abastecimento de navios.

(1) V. Revista Litorais, nº 2, Maio de 2005, Os primórdios de abastecimento de água à Figueira, um artigo de Isabel Pereira

5 de ago. de 2007

A MULHER QUE...



* Tinham ido à Serra da Boa Viagem. Era uma tarde de calor. A bola do sol parecia uma brasa redonda. Estava tudo azul e oiro. O céu. Os longes do mar. O rio quieto. Na fornalha do sol candente, os corpos, as almas, as coisas ardiam. O automóvel galgava as lombas da serra. E a vida crepitava em labaredas. E dessa vez duvidou…
No topo da serra, o panorama surpreendente, fez esquecer tudo o restante. É certo que a bola do sol boiava no azul sem vinco, derramando calor. E que ao Redol, pelos montes que se esfumavam nas distancias, pelo vasto mar sem fim, pela fita de nastro do rio que serpeava entre margens dum verde moço, pelos areaes do sul que flamejavam, - era tudo azul e oiro. Mas o panorama deslumbrava as retinas. E o resto esqueceu…
Saíram do carro. Da eminência, era um assombro de belesa que se rasgava. Desceram à mata dos cedros. Era tudo quiétude e silencio. Nem viv`alm! As franças do arvoredo, baloiçavam-se com tanta doçura, que o rumo era tão brando como uma carícia. Florice, enlaçou Luisinha. No ar palpitavam azas de seda, seivas perturbantes. As mãos de Florice, subiram o busto da amiga…
- Que lindo… que lindo…
Um dos seios de Luisinha, estava na concha das suas mãos:
- Que lindo… que lindo…
Mas Luisinha desprendeu-se. Correu. E dessa vez duvidou…
* Da novela "A mulher que não gostava de homens", de RAYM. (pseudónimo de Raymundo Esteves) editado em 1936

O DESEMBARQUE


* De 1 a 3 de Agosto de 1808 (passam 200 anos daqui a um ano) desembarcaram na praia do Cabedelo (1) dez mil soldados do corpo expedicionário inglês, comandadas pelo célebre Wellington. No dia 8, juntaram-se a estes mais cinco mil homens sob o comando do general Spencer.
O desembarque foi complicado devido ao estado do mar, apesar do auxílio prestado pelos figueirenses e pela galeota dinamarquesa “Elisabeth”.
Wellington ficou hospedado na casa do pároco António de Macedo, em Lavos, onde montou o seu quartel general e onde lhe foi dada a comer - por mor da fraqueza que trazia - uma canja rica, que ficou celebrizada numa carta do general a um amigo.
Em 1932 foi colocada na dita casa a placa da imagem.
* Veja-se o arquivo de Julho de 2004 onde se insere uma carta de um soldado inglês do corpo de Wellington escrita a 8 de Agosto de 1808 a partir do acampamento de Lavos, próximo da Figueira.
(1) M. Pinto e R. Esteves referem que o desembarque ocorreu dentro do porto da Figueira.

4 de ago. de 2007

FOLCLORE PORNOGRÁFICO


É lançado hoje, na Havaneza, um fac-simile do "Folclore Pornográfico da Figueira da Foz", uma obra editada em 1914, sem identificação de editor ou tipografia.

Trata-se um conjunto de quadras, adivinhas, imprecações, superstições, costumes, adágios, contos e modismo do bom povo figueirense. O conteúdo, popular e brejeiro, de cariz desveladamente erótico, revela acima de tudo a linguagem que as gentes utilizavam para traduzir aquilo que constituía conteúdo proibido nos meios sociais castos e púdicos.

Julga-se que este "Folclore" constituiu recolha de Cardoso Marta e Augusto Pinto, pois os mesmos editaram em 1911 e 1913 um "Folclore da Figueira da Foz" em dois tomos, obras que seguem a mesma sistematização que a sua congénere "pornográfica", a qual parece ter sido amputada daquelas primeiras edições.

Aqui fica um pouco do verbo desse saboroso "Folclore" agora reeditado:


Menina da saia branca
com sua barra por baixo,
deixe ver o pintassilgo
pr`a meter o meu cartaxo.

O cartaxo quer casar,
a folosa anda saida,
e anda o pisquito de roda
p`ra lhe meter a torcida.

Vou-te rogar uma praga:
em casa te cáia um raio
que te cáia entre as pernas
e te rache o papagaio.

28 de jul. de 2007

HÁ 125 ANOS


Assinala-se, neste 2007, 125 anos da elevação da vila da Figueira da Foz do Mondego a cidade.
Em 1882 a cidade e a região conheciam um progresso de registo. Nos dez anos que precederam a elevação a cidade registaram-se um conjunto assinalável de obras demonstrativas da pujança do lugar: em 1870 foi fundada a Empresa das Minas de Carvão do Cabo Mondego que viria a dar na Companhia Mineira e Industrial do Cabo Mondego; em 1872 foi instalada a fábrica de vidro do Cabo Mondego e em 1874 a Companhia conseguiu a desejada ligação por via-férrea ao porto, através do Americano. Neste mesmo ano iniciou-se a construção do Teatro Príncipe e no ano seguinte a estrada em direcção a Leiria ( a estrada para Coimbra precedeu esta alguns anos e diminuiu em 5 horas a viagem).
Em termos económicos a vila ganhava dimensão: para além das minas e do vidro, tinham importância a extracção de pedra, a salicultura e, claro, a pesca. Esta última sustentava um sector exportador que era o das conservas, também a ganhar preponderância. Acresciam a produção de cal e cimento (com força a partir da década de 80), a cerâmica (destaque para a Manufactura Cerâmica Figueirense, a funcionar no Viso), a metalúrgica (Mota de Quadros, 1878 e Oficinas do Mondego, 1891), a construção naval e a exportação do vinho.
Um mês antes da elevação a cidade, foi aberta a linha da Beira Alta (1882) e em 1888 chegou a Linha do Oeste. De 1884 data o teatro Circo Saraiva de Carvalho, a adjudicação da água (1886) e a iluminação a gás (1889). O mercado em 1892. Em 93 nasceu a Naval 1º de Maio e foi criada a Escola Industrial, em 94 o Museu, em 95 o Ginásio e o Coliseu e em 98 o edifício dos Paços do Concelho e o Casino Oceano. É caso para dizer que os últimos 30 anos do século XIX, que assistiram ao nascimento da cidade, são fecundos em realizações, embora do ponto de vista social se conheçam períodos de grande fome (1876, 1878 e 1893). É sabido que a partir da década de 90 o comércio exportador caiu de forma abrupta. Em Fevereiro de 1900 um texto na Gazeta da Figueira referia que “A Figueira não tem comércio, não tem indústria, não tem agricultura, isto é, presentemente, só a época balnear e o comércio do bacalhau são os seus principais factores de vida” (1)
Em 1878 a Figueira tinha 1080 fogos e 5676 habitantes e Buarcos 800 fogos e 3182 habitantes. Em 1886 assinalavam-se 6 hotéis.

Em Janeiro de 1883 na revista O Ocidente escrevia-se: (2)
A Figueira é das povoações de Portugal que nos últimos tempos mais se tem desenvolvido (…). Ainda nos princípios deste século passado, era apenas uma aldeia com 300 habitantes e pouco mais desenvolvimento tinha, quando em 1771 El-Rei D.José a elevou à categoria de vila.
(…) Hoje, a Figueira é uma cidade que está crescendo a olhos vistos, organizando companhias edificadoras que têm aumentado consideravelmente o número de edificações, ascendendo já a não menos de 1600 fogos, com cerca de 6000 habitantes.
Possui edifícios notáveis, incluindo um magnífico teatro e seu porto está defendido por uma doca de construção recente (…)
O seu aspecto é alegre e festivo e de um delicioso pitoresco, a par do seu belo clima.
Este conjunto de atractivos, chama um grande número de banhistas, na estação própria, às suas magníficas praias.
O seu comércio é importante, para o que lhe basta ter um magnífico porto de mar por onde se exporta grande quantidade de sal, azeite, vinhos e cereais, etc.
Agora o caminho-de-ferro da Beira Alta vai dar-lhe mais elementos de vida e desenvolvimento assegurando um futuro próspero a esta boa terra.”
(1) Cit. por Cascão, Rui, Figueira da Foz e Buarcos, Figueira da Foz, 1998
(2) Cit. por Jardim, José, As grandes linhas de uma cidade, Figueira da Foz, 1947

BENTO JOSÉ DA SILVA, 1º JUIZ DE FORA

Elevada a vila por decreto de 12 de Março de 1771, a Figueira da Foz teve como primeiro Juiz de Fora, Bento José da Silva que tomou posse em 30 de Julho.
Bento José da Silva nasceu em Coimbra em 1736 e tencionava seguir a carreira eclesiástica, da qual, entretanto, desistiu. Tomou posse na Figueira, pois a Câmara só em 1773 se mudaria de Tavarede para a novel vila (1).
A criação dos Juízes de Fora remonta ao princípio do século XIV e constituiu uma medida centralista, porquanto estes oficiais eram nomeados pelo rei e representavam a coroa. A sua designação está relacionada, justamente, com o facto de serem de fora, isto é, estranhos aos concelhos onde oficiavam; a razão desta qualidade reside no entendimento de que os de dentro não teriam a independência necessária para administrar a justiça (Manuel Fernandes Tomaz foi Juiz de Fora em Arganil)
Bento José da Silva teve tarefa difícil pois caiu no meio do braço de ferro entre o Cabido da Sé de Coimbra e a poderosa família Quadros.
O primeiro Juiz de Fora da, então, vila da Figueira da Foz casou na Qtª do Canal com D. Caetana Ifigénia de Salazar Vasconcelos da Silva e Crato, mais nova vinte anos que seu marido. A família possuía linhagem no oficio da magistratura de Alfandega e de Fora. A sua mãe e suas sete tias eram conhecidas como “as senhoras alfandegas”.
(1) De acordo com João P. Mano, in Litorais, nº 3, Nov. 2005

27 de jul. de 2007

A ALFANDEGA


É corrente atribuir-se à Alfandega nacional a idade da nação; na Figueira, os serviços de Alfandega instalaram-se em 1707. Contam por isso 300 anos. Dizia um velho regulamento que a Alfandega estava onde houvesse “portos secos, molhados e vedados”.
A etimologia da palavra provém do árabe e remete para um lugar de grande movimento, barulho e azáfama. Coincidem, por isso, as alfandegas, com o desenvolvimento do comércio. Assim foi entre nós.
A Casa do paço tinha começado a construir-se no início do século e poucos anos depois reedificava-se a igreja matriz. A Figueira tinha pouco mais de 700 habitantes e estava ainda a alguns nos de ser vila, mas no final da década de 50 já se reclamava esta pretensão. A burguesia ganhava preponderância social.
A Alfandega contribuía para as receitas da Câmara e em alguns anos, já no final do século, o seu contributo chegava a 50% daquele montante, sabendo-se, no entanto, que o seu contributo era um montante fixo. “A alfandega era um foco de poder com maior protagonismo do que propriamente a Câmara e esse fazia-se sentir a nível tanto económico como social”. Os habitantes “estavam muito mais dependentes da justiça exercida pelo juiz da alfandega do que pelo juiz de fora, porque pelo primeiro passavam as principais determinações sobre as suas actividades”.(*)

(*) Citações retiradas de Oliveira, Isabel, A Figueira da Foz de 1771 a 1790: poder e quotidiano municipal, 2005, ed. da C.M.F.F.


13 de ago. de 2005

O TEATRO DE AMADORES NA FIGUEIRA



Tida como terra onde o teatro amador muito se desenvolveu, a Figueira, tal como as outras terras, dava espaço ao teatro religioso e ao drama social.
Os Autos Pastoris ou Presépios cumpriam os valores da religiosidade popular. Estes remontam ao século XVIII mas perderam importância ao fim de algumas décadas, ressurgindo nos finais do séc. XIX. Nesta altura, no entanto, o carácter profano foi-se introduzindo nos Autos, aparecendo além das cenas clássicas de nascimento e adoração ao menino, novas cenas, adaptadas à realidade social local – um panfleto anuncia em 1920, na Philarmónica 10 de Agosto a “representação da tradicional e aparatosa peça phantástica OS REIS MAGOS e acrescenta “ e algumas engraçadas scenas dos Autos Pastoris”.

De acordo com Rui Cascão os Autos tinham uma função gastronómica onde cada espectador se apresentava “com a competente garrafa de vinho e respectivos nacos de torta doce e filhós”. A entrada no século XX apagou a tradição dos Autos que em 1909 já só se representavam na sede do Rancho do Vapor (em 1908 o Theatro Príncipe estreava a comédia “Fazer fogo com pólvora alheia”).

Com os ideais republicanos aparece o drama social, representado nos teatros operários, como o muito popular Teatro do Pinhal que albergava o Grupo Dramático Recreio Operário. As peças exibiam títulos como “O Veterano da Liberdade”, “A Ceia dos Pobres”, “André, o Fabricante”, “Gaspar, o Serralheiro” (esta, ainda há pouco levada a cena por um grupo amador nas Jornadas de Teatro de Amadores) e “Leonardo, o Pescador”. Em Buarcos e após a sua fundação (em 1907), o Grupo Caras Direitas era um esteio deste tipo de teatro. O Teatro Taborda, de Brenha, inaugurado em 1897 estreou-se com o drama “O 8 de Maio” de César de Sá, um autor local e o Teatro Trindade (então chamado Teatro do Celeiro) abriu em 1910 estreando “O Moleiro de Alcalá” (uma zarzuela) e o drama “A Pátria” pelo Grupo Philantrópico Instrução e Recreio. A Sociedade de Instrução Tavaredense inaugurou-se em 1904 com 3 comédias, cada uma em um acto.

Entretanto, nas sociedades recreativas burguesas, como a Assembleia Figueirense, o Ginásio Club Figueirense e o Grupo Dramático Figueirense, abrilhantavam-se operetas e comédias, muitas delas de autores locais.

29 de jul. de 2005

JOAQUIM ANTÓNIO SIMÕES





Nascido na freguesia da Abrunheira (1817-1905), Joaquim António Simões herdou posses dos seus pais e de um irmão. Desenvolveu, no entanto, actividades bem sucedidas no comércio exportador e deve ter sido o mais notável dos comerciantes figueirenses.

Exportou para o Brasil e outras paragens, Vinho do Porto, espumantes da Bairrada, geropigas, aguardentes e um licoroso de fabrico próprio, que se assemelhava ao Madeira; mais tarde canalizou os seus negócios para as ex-colónias de Angola e Moçambique.

Rezam as crónicas que os seus armazéns (em número de 14, localizados onde é hoje o Palácio da Justiça) eram dos maiores do país e que foram montados por operários de Bordéus. Empregava, na sua tanoaria privativa, nos momentos de maior trabalho, cerca de oitenta operários e utilizava “as mais modernas e apuradas machinas”. Os seus produtos foram medalhados em Filadélfia, Paris e Cidade do Cabo.

Joaquim António Simões foi membro do Partido Progressista e foi ministro de D. Maria em 1848.
A ele se ficou a dever a construção do Teatro Circo Saraiva de Carvalho (concluído em 1885), que viria a dar origem ao actual casino (foi o principal accionista da Sociedade Teatro-Circo Saraiva de Carvalho), e foi o grande impulsionador da construção do ramal ferroviário da Beira Alta (1882). Também se deve à sua influência a construção da primeira ponte sobre o Mondego (1906).

Vejam o post "As pontes da Figueira" de Agosto de 2004.

25 de jul. de 2005

A CASA DO PAÇO




Em 1701 iniciava-se construção da nova igreja matriz. Eram tempos difíceis pois o povo pediu ao Rei que os dízimos entregues ao Cabido da Sé ficassem aqui, para ajudar à construção do templo. Esta deverá ter sido também a razão pela qual se interromperam, nesta altura, as obras de reconstrução das fortalezas de Buarcos e da Figueira, que se realizavam por alvará de D. Pedro II.

Em 1704 morria o bispo-conde D. João de Melo – 49º Bispo de Coimbra e 14º Conde de Arganil, nascido na Figueira da Foz em 1620 - a quem se atribui a construção da Casa do Paço, iniciada em 1700. Refere o investigador Arnaldo Soledade que o bispo mandou erigir a Casa “por sentir na carne os efeitos estivais da velha Coimbra”.

Na verdade, o bispo não devia andar bem pois não sobreviveu para ver a edificação completa. Tudo indica que a Casa nunca foi concluída, face ao projecto inicial, pois falta-lhe o torreão poente.

A razão da atribuição da Casa a D. João de Melo prende-se com a similitude da sua fachada principal com a fachada norte do Convento de Stª Isabel. Os torreões também são iguais, têm as mesmas proporções e igual coroamento.

A Casa foi deixada pelo Bispo-Conde ao seu sobrinho D. António José de Melo, cujos descendentes foram condes da Figueira. Já foi hospedaria, sede da Assembleia Figueirense, colégio, ginásio, museu municipal e local de instrução militar.

24 de jul. de 2005

A GRANDE EPIDEMIA E O CRUZEIRO



Quando o general Massena passou a fronteira com um exército de 60 mil homens, as populações das aldeias limítrofes acorreram à cidade em busca de protecção. A grande aglomeração de famílias em condições de pouca higiene gerou uma epidemia que provocou forte mortandade (mais de 5 mil mortes), tendo atacado também os “soldados da Brigada”.

O número de mortes obrigou a Câmara de então a abrir novo cemitério, pois o adro da igreja matriz mostrava-se insuficiente. A decisão teve lugar a 24 de Janeiro de 1810 e reza assim uma passagem:

“(…)Se não deviam enterrar no centro da povoação onde está a egreja e o seu adro, e por conseguinte se devia estabelecer um logar mais remoto e separada para que os mesmos se sepultassem com segurança do público (…) e assentaram que o sitio mais adequado (…) fosse a Cerca do Convento de Santo António”.

Com a batalha do Bussaco e tendo as Brigadas deixado a Figueira da Foz, as gentes refugiaram-se nos arredores, pelos pinhais e montes.
Em Outubro, Massena mandou Montbrun à Figueira para saquear os armazéns da terra que se julgavam bem abastecidos, mas os franceses encontraram-nos vazios.

Com a saída dos franceses do território nacional começou a chegar à Figueira forte apoio em alimentos que eram distribuídos para outras paragens.

Todos dizem que a foz de Figueira do nosso Mondego está coalhada de Hyates e outras embarcações de transportes”.

Para assinalar estes acontecimentos foi erigido em 1912 um cruzeiro, em cuja base um texto dá conhecimento destes factos e que se encontra agora na rua Heróis do Ultramar.


Nota: O monumento está completamente abandonado mais parecendo uma lixeira; falta, no seu exterior, uma explicação alusiva aos factos históricos que lhe deram origem.

22 de jul. de 2005

AS ESCOLAS NA FIGUEIRA DA FOZ



Em 1779 a Rainha D. Maria, mulher dada aos assuntos da educação, criou uma Aula de Gramática Latina e mais tarde uma escola de ler, escrever e contar entregue aos frades do Convento de Stº António.

Quase um século depois foi criada uma Aula de Desenho Industrial (1888) sendo estabelecida em 1889 a Escola Industrial. Dois anos depois esta escola “caía” mas Bernardino Machado, em 1893, havia de a reabilitar. Esta escola leccionava Desenho Geral e Industrial, Língua Francesa e o Curso Elementar do Comércio.

Em 1910 foi fundado o Colégio Figueirense por José Luiz Mendes Pinheiro que mais tarde (1936) o doou ao episcopado de Coimbra. Viria a ser o Seminário da Figueira da Foz.

Em 1914, já na República, foi criado o Jardim Escola João de Deus, sito no Bairro do Pinhal, obra levada a cabo pela Misericórdia.

Em 1922 nasceu a Academia Figueirense, um externato para rapazes onde era ministrado o curso primário e o curso liceal.

Em 1932 foi criado o Liceu Municipal Bissaya Barreto que funcionava onde era, até há pouco tempo, o terminal rodoviário.

Em 1949 apareceu o Colégio de Stª Catarina, para raparigas.

Em 1961 o Liceu Municipal passaria a Nacional, em 1969 mudou-se para as actuais instalações e em 1978 tomou o nome de Joaquim de Carvalho.

Em 1986 foi criada a Escola Cristina Torres e depois desta surgiram já as escolas Pedrosa Veríssimo, no Paião, a Escola Pintor Mário Augusto, nas Alhadas e a Infante D. Pedro em Buarcos.

7 de jul. de 2005

OS MERCADOS DA FIGUEIRA E O JARDIM (1770-1892)



O primeiro mercado da Figueira da Foz começou a funcionar por volta de 1770 no local onde é hoje a Praça Velha. Ao tempo, a praça era uma enseada do rio designada Praia da Ribeira e servia de estaleiro. O mercado funcionava na zona onde hoje se encontra o pelourinho.

Em 1772 a Câmara mandou aterrar a enseada tendo os trabalhos ficado concluídos em 1784. A zona aterrada deu então lugar à designada Praça do Comércio, a qual passou a ser o coração da vila.

O local onde hoje se encontra o Jardim Municipal era igualmente uma enseada do rio (a mais profunda) chamada Praia da Fonte que servia de doca para conserto de embarcações. Em frente havia uma doca para fundeadouro e descarga e toda a frente ribeirinha, dali até ao forte, era zona de armazéns e oficinas: Forjas, serralharias, casa de arreios, carpintarias e cantarias, entre outras.

Aterrada a Praia da Fonte nasceu em 1881 o Jardim Municipal. Tinha uma zona ajardinada, um lago de dimensões razoáveis e um coreto. Curiosamente, o lago ficava no local que viria a ser depois o coreto, ou seja, mesmo em frente ao mercado (V. imagem).

A Câmara de Francisco Lopes Guimarães deliberou em 1890 construir o mercado, tendo escolhido uma proposta da Companhia Progresso Figueirense de Guilherme Mesquita.
O mercado foi inaugurado oficialmente em Junho de 1892.

4 de jul. de 2005

MATCHS DE DOMINGO

Uma delícia esta prosa desportiva encontrada na GAZETA DA FIGUEIRA de 1 de Fevereiro de 1911.

No passado domingo jogaram no campo do Gymnasio, na Morraceira , o 1º e 2º team deste club, e os teams da A. Naval e A. dos Caixeiros.
Ao meio dia jogaram os teams da Naval e dos Caixeiros, ficando o jogo empatado por 0 goals a 0, apezar da boa vontade de uns e d`outros. Há pouco a notar neste match: muita parede dos dois campos (parece que aprenderam agora este modo de defeza); bons shots de um dos backs da Naval e de outro dos Caixeiros; Gouveia, que jogou bem, e que foi ajudado pelos seus insides; Paulo de Carvalho que defendeu bem e … nada mais.
Pouco tempo depois realizou-se um treino entre os dois teams do Gymnasio. No segundo team há alguns players com aptidão para o jogo, e que, como primeiro treino, jogaram menos mal. A. Marques, back direito d`este team, tem um bom shot e fez boas defezas.
Pelas duas horas jogaram os primeiros teams do G. e do A. Dos C. marcando o G. 1 goal contra 0.
A chuva, que começou a cahir com mais abundância, prejudicou muito o jogo dos players, principalmente dos do G. que tinham o vento contra. Os Caixeiros pouco tiveram que defender, pois que o vento rijo que soprava se encarregava de defender o seu goal. José Bento, keeper do G. trabalhou muito e se assim não fosse o G. veria entrar algumas bolas pelo seu goal.
Os players do Gymnasio estavam desastrosos. De quando em quando falhavam shots, até aos que os teem mais firmes. Mas apesar disso, da sua pouca sorte, todos trabalharam com vontade, notando-se Dr. Rainha, nas suas bellas defezas, os forwards que, vamos lá, não andaram mal, F. das Neves e M. Gaspar, halfs, que defenderam bem e José Bento, que como já dissemos se portou como mestre.
Os backs estavam um pouco fracos, o que não admira pois tinham constantemente que defender.

21 de mai. de 2005

A PRAÇA VELHA EM FINAIS DO SÉCULO XIX



(...) Nos finais do século XIX surge-nos a zona mais antiga da praça toda calcetada com árvores junto das ruas laterais e bancos nos intervalos; a zona central da praça apresenta larga faixa empedrada a basalto e no centro uma grande circunferência limitando uma estrela que contem no meio um pequeno círculo com data de 1879 o que nos sugere que o calcetamento tenha sido feito em igual data. Junto aos prédios surgem-nos alguns passeios de cantaria e em dois deles rebatos altos, moldados, que serviriam para impedir a entrada das águas aquando das marés; no topo norte o pelourinho. A zona sul da praça era ainda mais simples consistindo num terreno central alongado até ao cais, em macadame mal cilindrado, orlado de árvores e bancos com duas ruas laterais e passeios estreitos, calcetados.
Foi num prédio desta praça que nasceu o nosso conterrâneo General Freire de Andrade quando o seu pai se encontrava ao serviço das obras do porto.
(…) Ao contrário do habitual não eram a farmácia ou a barbearia os locais mais procurados para cavaqueira desses tempos mas sim o Estanco Real, estabelecimento que tinha o privilégio da venda de tabacos. Era ali que todas as noites, em agradável e ranço convívio, se juntavam as pessoas gradas locais.
Tratava-se de um estabelecimento amplo. Bastante fundo, dividido a meio por um balcão com paredes escuras e forradas até meia altura; do lado de fora situavam-se bancos compridos de madeira de pinho, e a luz, em virtude não haver janelas, apenas penetrava pela porta frontal (...)
Retirado do Dr. Santos Rocha, Materiais...

MOUROS EM BUARCOS



Esta noute de domingo pêra a segunda feira tratarão duas lanchas de mouros de entrar na villa de Buarcos e por ia (já) estar gente metida dentro se lhes fés resistência e se forão vindo acodir um Capitao mor a esta hora que são doze do dia forão vistas cincoenta e tantas vellas e da vella que fiqua no monte alto (Vela, na Serra da Boa Viagem) me avisao que se vista de mais não passando na derrota para essa cidade e por que sendo de inimigos como se presume se podem ir detendo humas por outras aviso a V. magestade e nesta costa de tratar com muito cuidado posto que he terra sem defesa como mais largamente darei conta a vossa Magestade Cuia Catholica pessoa deus guarde nesta costa de Buarcos 29 de Julho 1630
Dioguo Martins coelho

8 de mai. de 2005

A TOMADA DO FORTE DE STª CATARINA



O sargento de artilharia Bernardo António Zagalo saiu de Coimbra à frente de uma força de 40 voluntários, 25 dos quais estudantes.
Pelo caminho os sitiados foram arrebanhando homens para a sua causa, fazendo aclamações e repicando sinos.
Às sete da manhã o batalhão entrou na Figueira e compunha-se então de perto de 3000 homens armados com lanças, piques e foices.

Os franceses, que há 7 meses ocupavam o forte e a cidade estavam desprevenidos. Diz Zagalo:
“Vendo porem, que o povo sem refletir no perigo se adeantava demais, corri à sua frente e o fiz retirar: nessa ocasião dispararão os franceses alguma mosquetearia e huma peça de artilharia sobre nós; mas tendo observado os seus movimentos deitámo-nos e moa ferirão uma única pessoa. Como o cerco estava formalmente lançado e a comunicação como Cabedelo inteiramente cortada intime aos franceses quese rendessem pois sabia que não tinhao mantimentos ara aquele dia, aliás seria passados à espada. O comandante respondeu que era um tenente engenheiro portuguez e que não podia render-se por causa do perigo em que ficava a sua família que tinha em Peniche em poder dos franceses; em razão disto continuou o cerco e quando se estavao para render à descrição de hora a hora recebi no dia 27 (Junho de 1808) ordem do governador de Coimbra para me retirar imediatamente para aquela cidade”.

O povo entretanto entrou pelo forte e com ele as autoridades – major de Buarcos, juízes de Fora da Figueira e Tentugal – e desarmaram os franceses.
Nota: Sobre este assunto veja os posts "Valorize-se o Forte de Stª Catarina" e "Os ingleses na Figueira", ambos de Julho de 2004

FIGUEIRA VILA - MARÇO DE 1771



Hey por bem erigir villa o lugar da Figueira da Fós do Mondego e crear nella o lugar de juis de Fora, Crime e orfaons que terá por destricto os coutos de Mayorca, das Alhadas, Quiajos, TAvarede, LAvos e e az villas de Buarcos e redondos e os ocnselhos e cituações a sul do rio chamado de Carnide ou do Louriçal desde onde principia o destricto da Ouvedoria de pombal ate o Moinho de Almoxarife que tudo hey por desmembrado do destricto de Monte Mor o velho a quem ate agora pertenci e outrossim hey por bem nomear para o logar de juis de Fora o bacharel Bento Joze da Silva o qual fazendo a meu contento a dita creação se haverá o dito logar por cabeça de comarca depois de me servir três annos e os mais que decorrerem emquanto lhe não nomear successor.
Palácio de Nossa Senhora de Ajuda em 12 de Março de 1771