Se a terra falasse, havia de contar, por entre abundantes lástimas, muitos sinais do amor dos homens por ela... Terra humanizada é sempre mais que terra trabalhada. Se o homem só a quisesse como nascente de ouro, talvez já ela se tivesse extinguido. Mas, se a terra dá o pão à gente, também nós lhe damos pão. E o pão mais rico que lhe damos não é tanto a semente que a fecunda; é a alma que lhe confiamos.
Estou-me agora a lembrar de uma certa terra, entre dunas que os pinhais cobriram, e o campo aberto pelas águas que descem de Sicó em busca do Mondego, e o Mondego leva ao mar. O nome que lhe dou, vou agora apenas segredá-lo, já que me não deu ela licença para o revelar. E ela sabe que nem a quero trazer para as bocas do mundo, nem ela é mais que as suas irmãs, dispersas naquela fita de chão que tem ao sul a Saunum dos Romanos e ao norte o Monte Maior da Reconquista, e que a poente se debruça sobre a Figueira e a nascente adivinha Coimbra, a sempre desejada.
Não. Não é esta uma língua de terra que claramente fale de coisas espirituais. Até as tradições do povo se foram afogando e enleando na poderosa floração urbana. Por isso, é mais profunda a voz que sobe da terra, como a descarnar todas as raízes e a forçar os homens a reconhecerem-se nos sinais.
Não foi Coimbra, a Rainha Desejada, que deu vida a este rincão. Nem a Figueira, nem Montemor, nem Soure. Como tantas outras regiões portuguesas, esta (feita da minha terra e das suas irmãs) teve por pai um Rei e por mãe uma ordem religiosa. A minha «pátria chica» descende de D. Sancho, o Velho, e do mosteiro de Ceiça, um dos de Cister.
Pelos anos em que nascia António de Lisboa e (diante de Deus e dos homens) crescia e todo se dava eucaristicamente e depois se recolhia em Coimbra e, do esplendor da Santa Cruz, subia à ermidinha de Santo Antão dos Olivais - por esse tempo de poisio das armas e de arrotear da gleba-, o Povoador, lá no plano da vontade soberana, decidia que estas dunas (ainda hoje recheadas de fósseis marinhos) e esta lezíria de boas águas começassem a dar berços e pão. Ao mesmo tempo, Santa Maria de Ceiça (que o Destino traiçoeiro havia de tornar, séculos volvidos, em barulhenta fábrica de descasque de arroz!), por seu lado actuando no plano próprio das Regras de criação de S. Bento, ia ensinando a gente rude (vinda sabe Deus donde) a lavrar, semear, plantar, podar, enxertar, colher, enceleirar, prever - e, em tudo, orar e amar.
Ninguém veio depois que, destas boas coisas, soubesse tanto. O azeite, o vinho e a broa foram saindo da nossa mesa. Os Vigários de Ceiça foram perdendo o nome (que respondia, na memória dos povos, à antiga função de representantes do Abade em cada uma das freguesias nascidas do mosteiro) e até fugindo das igrejas e dos povoados rurais, para se concentrarem na sede do arciprestado. Já pela Páscoa santa não corre as ladeiras e as vielas, visitando todos os vizinhos, a Cruz do Senhor. Para encomendar os mortos na hora do beijo com a terra, chega uma estola envergonhada a manchar de roxo um casaco qualquer. Já o povo não guarda (a não ser por acaso) os domingos e dias santificados. Já a bem dizer ninguém pára e se benze ao tocar das Trindades. E as velhas ruínas (ruínas de ruínas, como dizia, de outras, o nosso mestre Hipólito Raposo) do que foi, há séculos, meio celeiro meio convento, e as últimas pedras da última capela de quinta dos frades estremecem um adeus ao Sol e, como pó que foram, também elas voltam ao pó.
Lá por dentro da minha igreja (erguida durante a Restauração, para aproximar mais o povo dos campos fecundos, enquanto a Igreja Velha ia ficando apenas um nome na memória dos velhos) já não há sinais das antigas sepulturas. À volta das paredes muito brancas (Deus as conserve!), já as últimas ossadas do antigo cemitério saltaram, ao encontro dos ossos novos, que, lá ao alto, desde os tempos da anti-Maria da Fonte, dominam o horizonte dos vivos.
Terras por onde passa (a meia hora) a linha dos comboios e, um pouco mais além, a estrada de Lisboa ao Porto não podem ser terras de ceara farta do Espírito. A não ser, meu Deus, que seja certo que o Espírito sopra donde quer e para onde quer. E pode ser que lá venha o dia em que novos Povoadores e novas Cisteres, como os outros que despertaram dos séculos de ferro, tragam de novo a bênção. Já nem sei se de azeite, de vinho, de broa e de carqueja, de tojo e de giesta, de caça miúda e de couves mais altas que um homem - mas de Alegria, Senhor... Da alegria que nasce de um coração que aprendeu e compreendeu a antiga e veneranda regra: «Ora et labora!».
* Texto de Henrique Barrilaro Ruas, in Cultura Portuguesa, nº 2 , Jan. 1982
Estou-me agora a lembrar de uma certa terra, entre dunas que os pinhais cobriram, e o campo aberto pelas águas que descem de Sicó em busca do Mondego, e o Mondego leva ao mar. O nome que lhe dou, vou agora apenas segredá-lo, já que me não deu ela licença para o revelar. E ela sabe que nem a quero trazer para as bocas do mundo, nem ela é mais que as suas irmãs, dispersas naquela fita de chão que tem ao sul a Saunum dos Romanos e ao norte o Monte Maior da Reconquista, e que a poente se debruça sobre a Figueira e a nascente adivinha Coimbra, a sempre desejada.
Não. Não é esta uma língua de terra que claramente fale de coisas espirituais. Até as tradições do povo se foram afogando e enleando na poderosa floração urbana. Por isso, é mais profunda a voz que sobe da terra, como a descarnar todas as raízes e a forçar os homens a reconhecerem-se nos sinais.
Não foi Coimbra, a Rainha Desejada, que deu vida a este rincão. Nem a Figueira, nem Montemor, nem Soure. Como tantas outras regiões portuguesas, esta (feita da minha terra e das suas irmãs) teve por pai um Rei e por mãe uma ordem religiosa. A minha «pátria chica» descende de D. Sancho, o Velho, e do mosteiro de Ceiça, um dos de Cister.
Pelos anos em que nascia António de Lisboa e (diante de Deus e dos homens) crescia e todo se dava eucaristicamente e depois se recolhia em Coimbra e, do esplendor da Santa Cruz, subia à ermidinha de Santo Antão dos Olivais - por esse tempo de poisio das armas e de arrotear da gleba-, o Povoador, lá no plano da vontade soberana, decidia que estas dunas (ainda hoje recheadas de fósseis marinhos) e esta lezíria de boas águas começassem a dar berços e pão. Ao mesmo tempo, Santa Maria de Ceiça (que o Destino traiçoeiro havia de tornar, séculos volvidos, em barulhenta fábrica de descasque de arroz!), por seu lado actuando no plano próprio das Regras de criação de S. Bento, ia ensinando a gente rude (vinda sabe Deus donde) a lavrar, semear, plantar, podar, enxertar, colher, enceleirar, prever - e, em tudo, orar e amar.
Ninguém veio depois que, destas boas coisas, soubesse tanto. O azeite, o vinho e a broa foram saindo da nossa mesa. Os Vigários de Ceiça foram perdendo o nome (que respondia, na memória dos povos, à antiga função de representantes do Abade em cada uma das freguesias nascidas do mosteiro) e até fugindo das igrejas e dos povoados rurais, para se concentrarem na sede do arciprestado. Já pela Páscoa santa não corre as ladeiras e as vielas, visitando todos os vizinhos, a Cruz do Senhor. Para encomendar os mortos na hora do beijo com a terra, chega uma estola envergonhada a manchar de roxo um casaco qualquer. Já o povo não guarda (a não ser por acaso) os domingos e dias santificados. Já a bem dizer ninguém pára e se benze ao tocar das Trindades. E as velhas ruínas (ruínas de ruínas, como dizia, de outras, o nosso mestre Hipólito Raposo) do que foi, há séculos, meio celeiro meio convento, e as últimas pedras da última capela de quinta dos frades estremecem um adeus ao Sol e, como pó que foram, também elas voltam ao pó.
Lá por dentro da minha igreja (erguida durante a Restauração, para aproximar mais o povo dos campos fecundos, enquanto a Igreja Velha ia ficando apenas um nome na memória dos velhos) já não há sinais das antigas sepulturas. À volta das paredes muito brancas (Deus as conserve!), já as últimas ossadas do antigo cemitério saltaram, ao encontro dos ossos novos, que, lá ao alto, desde os tempos da anti-Maria da Fonte, dominam o horizonte dos vivos.
Terras por onde passa (a meia hora) a linha dos comboios e, um pouco mais além, a estrada de Lisboa ao Porto não podem ser terras de ceara farta do Espírito. A não ser, meu Deus, que seja certo que o Espírito sopra donde quer e para onde quer. E pode ser que lá venha o dia em que novos Povoadores e novas Cisteres, como os outros que despertaram dos séculos de ferro, tragam de novo a bênção. Já nem sei se de azeite, de vinho, de broa e de carqueja, de tojo e de giesta, de caça miúda e de couves mais altas que um homem - mas de Alegria, Senhor... Da alegria que nasce de um coração que aprendeu e compreendeu a antiga e veneranda regra: «Ora et labora!».
* Texto de Henrique Barrilaro Ruas, in Cultura Portuguesa, nº 2 , Jan. 1982