* Sim, era uma vez um rapaz chamado J. Oliveira Santos (a quem os amigos tratavam meramente por Jota). Compunha versos, escrevia artigos em jornais, todo ele um nervo sensitivo mas sem o alimento cultural adequado. Até que, um dia, a novidade estoirou, grandiloquente, pelo burgo: Oliveira Santos dispunha-se a fazer um filme sobre a Figueira: «Dois Corações... Um Destino». Pelo título se poderá aquilatar do contexto.
Jamais o ingénuo fantasista entrara num estúdio. De cinema, portanto, não sabia nada. O operador era Manuel Santos, antigo comerciante com alguns meios de fortuna. Este émulo de Paz dos Reis possuía uma câmara manual, assaz rudimentar, com que se comprazia, por desfastio, a fixar as regatas, cenas de praia e pesca, touradas e concursos hípicos. Com todos os defeitos, por conseguinte, de quem se habituara a ver no bilhete postal o supra-sumo da arte cinematográfica. .
J. Oliveira Santos «vestia-se» de realizador, isto é, enfiava uma camurcina branca, com o cinto a vincar-lhe fortemente o estômago, acocorava-se junto do tripé, e gritava, pelo majestático megafone, com muita ênfase, muito brio, estas duas expressões apenas: «filma» e «corta». Como não havia som, como o som não era síncrono, nem havia iluminação adequada, nem, enfim, se atendia àquele mínimo de preceitos técnicos necessários a um filme, o resultado estava bem à vista: umas figuras pasmadas de reportagem de cinema mudo, a abrirem e a fecharem puerilmente a boca, a derivarem algo bruscas e grotescas pela pantalha e a gesticularem em conformidade. Uma parvoíce. . .
O filme, é bom que se esclareça, embora pretendesse ser uma obra de fundo, com acção e personagens várias, visava a propagandear as belezas da Figueira. Como, porém, faltasse o dinheiro para levar a empresa por diante, decidiram, decidiu J. Oliveira Santos, começar pelo fim, quer dizer, fazer um «trailer», uma amostragem capaz de revelar às forças vivas as virtualidades hollywoodescas da terra, e com isso obter os fundos necessários à ultimação da fita: Uma originalidade; creio bem, em toda a história do cinema. .
E os actores? Ora vejamos. Ela chamava-se Madalena Ótão (hoje Madalena Soto), e ele, na vida real marido dela, Manuel Brandão. .
Este Manuel Brandão, filho embora de pais portugueses, era brasileiro. Autor de dois livrinhos de versos (falta-me a paciência para ir lá acima vasculhar a biblioteca), era um moço simpático, esguio e moreno, porém doentiamente ciumento. Algo como um cantor de tangos da época.
Enquanto, por exemplo, a mulher levantava voo do campo Humberto Cruz, entregue a um piloto qualquer, ficava-se ele, cá em baixo, com um grupo de amigos, a rilhar o lábio nervoso.
Entre os autores da música do famigerado «Dois Corações... Um Destino», estava eu, que completara pouco antes dezoito anos. Tudo então eram pretextos para almoçaradas e jantaradas de todos os intervenientes no filme. Comia-se e bebia-se desalmadamente. Dinheiro,- donde vinha, não sei. Havia contudo o Luís Lopes de Oliveira, filho de um pesado negociante de vinhos e azeites, que sempre me parecera sensível à cheirosa frescura da Madalena. E umas letras que o Cândido J. Oliveira Santos ia sacando do banco onde estava empregado.
Uma noite, eu a chegar ao Bairro Novo e o Luís Lopes, com toda a equipa, muito obediente, à sua volta, a dizer-me, assaz decisivo e patrocinador:
- Você tem de partir amanhã de manhã para Lisboa. É preciso contratar a Orquestra Sinfónica Nacional para gravar a música do filme.
Tímido, varado, aquilo pareceu-me, confesso, excessivo. Mas quem era eu para contrapor fosse o que fosse? Aliás, o que se pretendia de momento, agora que se aproximava a estreia do «trailer», era que eu gravasse ao piano os temas principais, que haviam de acompanhar os 160 metros de película até então impressionados. Passaram-me para as mãos uns contos de réis e aí vou eu (no fundo muito satisfeito) a caminho de casa a preparar as malas.
Desembarquei em Lisboa por volta da uma e meia da tarde. Corria o mês de Julho de 1938- um Julho ardente e fulgurante que me fez bater as pálpebras quando, soberbo, me dirigi para o Suíço, famoso restaurante à esquina dos Restauradores com o Largo D. João da Câmara.
(…) Meia hora depois entregavam-me gratuitamente o disco que me apressei a ir guardar no hotel. Andei na pândega duas noites e, na véspera do dia da estreia do «trailer», dei-me ao cuidado de mandar um telegrama ao J. Oliveira Santos: «Chego amanhã de manhã. Abraços.»
O calor, em Lisboa, era de estucha. Ainda cedo, aí pelas oito, já o comboio ardia sob as cúpulas de ferro do Rossio. Tomei com muito garbo a minha 1.a classe - é sempre bom, confortável e reconfortante, viajar por conta alheia -, e arranjei lugar ao pé da janela. .
O disco, em vez de o ter metido na mala, não, senhor. Levava-o à parte, talvez para poder mirar-me nele, gozar-me do seu corpo redondo e flexível. E, agora, onde arrumá-lo? Em cima da mala, podia escorregar; na rede, ficaria a bem dizer suspenso e portanto sem apoio. Eureca: debaixo do banco. Aí é que ele iria bem.
Lá para as bandas das Caldas, e eu, satisfeito, bastante satisfeito, a degustar por antecipação aquele êxito - tinha, não o esqueçamos, dezoito anos -, começo a ver qualquer coisa como uma bicha negra a serpentear pelo chão da carruagem, uma escorrência repugnante de alcatrão.
Aflito, sufocado, curvo-me, espreito, surpreendo com horror o disco convertido numa espécie de manteiga negra que vergonhosamente alastrava aos altos e baixos pelas réguas do pavimento. (…) Quando, por volta da uma da tarde, cheguei à Figueira da Foz, a estação abarrotava de gente à minha espera: toda a equipa do filme e enervantes aderentes, que muitos eram, além dos infalíveis mirones.
Fomos dali em cortejo automóvel até ao Parque-Cine, incrível barracão no qual, de Inverno, até lhe chovia dentro. Cinco ou seis de nós, com o J. Oliveira Santos, lesto, a comandar, subimos à cabina. Pôs-se o disco, que entretanto secara, no prato do pick-up. Imagine-se a minha consternação, maior ainda, sem dúvida, que a dos outros: a voz do Pessa, mas já um tanto grave, um tanto perra, a querer dramaticamente extinguir-se: «Céu.., éu... ,éu... da Fi…Fi… (o Oliveira Santos, com o dedo, a fazer girar o disco). Música de…de…de…
* Luís Cajão, As Torrentes da Memória, 1979
Jamais o ingénuo fantasista entrara num estúdio. De cinema, portanto, não sabia nada. O operador era Manuel Santos, antigo comerciante com alguns meios de fortuna. Este émulo de Paz dos Reis possuía uma câmara manual, assaz rudimentar, com que se comprazia, por desfastio, a fixar as regatas, cenas de praia e pesca, touradas e concursos hípicos. Com todos os defeitos, por conseguinte, de quem se habituara a ver no bilhete postal o supra-sumo da arte cinematográfica. .
J. Oliveira Santos «vestia-se» de realizador, isto é, enfiava uma camurcina branca, com o cinto a vincar-lhe fortemente o estômago, acocorava-se junto do tripé, e gritava, pelo majestático megafone, com muita ênfase, muito brio, estas duas expressões apenas: «filma» e «corta». Como não havia som, como o som não era síncrono, nem havia iluminação adequada, nem, enfim, se atendia àquele mínimo de preceitos técnicos necessários a um filme, o resultado estava bem à vista: umas figuras pasmadas de reportagem de cinema mudo, a abrirem e a fecharem puerilmente a boca, a derivarem algo bruscas e grotescas pela pantalha e a gesticularem em conformidade. Uma parvoíce. . .
O filme, é bom que se esclareça, embora pretendesse ser uma obra de fundo, com acção e personagens várias, visava a propagandear as belezas da Figueira. Como, porém, faltasse o dinheiro para levar a empresa por diante, decidiram, decidiu J. Oliveira Santos, começar pelo fim, quer dizer, fazer um «trailer», uma amostragem capaz de revelar às forças vivas as virtualidades hollywoodescas da terra, e com isso obter os fundos necessários à ultimação da fita: Uma originalidade; creio bem, em toda a história do cinema. .
E os actores? Ora vejamos. Ela chamava-se Madalena Ótão (hoje Madalena Soto), e ele, na vida real marido dela, Manuel Brandão. .
Este Manuel Brandão, filho embora de pais portugueses, era brasileiro. Autor de dois livrinhos de versos (falta-me a paciência para ir lá acima vasculhar a biblioteca), era um moço simpático, esguio e moreno, porém doentiamente ciumento. Algo como um cantor de tangos da época.
Enquanto, por exemplo, a mulher levantava voo do campo Humberto Cruz, entregue a um piloto qualquer, ficava-se ele, cá em baixo, com um grupo de amigos, a rilhar o lábio nervoso.
Entre os autores da música do famigerado «Dois Corações... Um Destino», estava eu, que completara pouco antes dezoito anos. Tudo então eram pretextos para almoçaradas e jantaradas de todos os intervenientes no filme. Comia-se e bebia-se desalmadamente. Dinheiro,- donde vinha, não sei. Havia contudo o Luís Lopes de Oliveira, filho de um pesado negociante de vinhos e azeites, que sempre me parecera sensível à cheirosa frescura da Madalena. E umas letras que o Cândido J. Oliveira Santos ia sacando do banco onde estava empregado.
Uma noite, eu a chegar ao Bairro Novo e o Luís Lopes, com toda a equipa, muito obediente, à sua volta, a dizer-me, assaz decisivo e patrocinador:
- Você tem de partir amanhã de manhã para Lisboa. É preciso contratar a Orquestra Sinfónica Nacional para gravar a música do filme.
Tímido, varado, aquilo pareceu-me, confesso, excessivo. Mas quem era eu para contrapor fosse o que fosse? Aliás, o que se pretendia de momento, agora que se aproximava a estreia do «trailer», era que eu gravasse ao piano os temas principais, que haviam de acompanhar os 160 metros de película até então impressionados. Passaram-me para as mãos uns contos de réis e aí vou eu (no fundo muito satisfeito) a caminho de casa a preparar as malas.
Desembarquei em Lisboa por volta da uma e meia da tarde. Corria o mês de Julho de 1938- um Julho ardente e fulgurante que me fez bater as pálpebras quando, soberbo, me dirigi para o Suíço, famoso restaurante à esquina dos Restauradores com o Largo D. João da Câmara.
(…) Meia hora depois entregavam-me gratuitamente o disco que me apressei a ir guardar no hotel. Andei na pândega duas noites e, na véspera do dia da estreia do «trailer», dei-me ao cuidado de mandar um telegrama ao J. Oliveira Santos: «Chego amanhã de manhã. Abraços.»
O calor, em Lisboa, era de estucha. Ainda cedo, aí pelas oito, já o comboio ardia sob as cúpulas de ferro do Rossio. Tomei com muito garbo a minha 1.a classe - é sempre bom, confortável e reconfortante, viajar por conta alheia -, e arranjei lugar ao pé da janela. .
O disco, em vez de o ter metido na mala, não, senhor. Levava-o à parte, talvez para poder mirar-me nele, gozar-me do seu corpo redondo e flexível. E, agora, onde arrumá-lo? Em cima da mala, podia escorregar; na rede, ficaria a bem dizer suspenso e portanto sem apoio. Eureca: debaixo do banco. Aí é que ele iria bem.
Lá para as bandas das Caldas, e eu, satisfeito, bastante satisfeito, a degustar por antecipação aquele êxito - tinha, não o esqueçamos, dezoito anos -, começo a ver qualquer coisa como uma bicha negra a serpentear pelo chão da carruagem, uma escorrência repugnante de alcatrão.
Aflito, sufocado, curvo-me, espreito, surpreendo com horror o disco convertido numa espécie de manteiga negra que vergonhosamente alastrava aos altos e baixos pelas réguas do pavimento. (…) Quando, por volta da uma da tarde, cheguei à Figueira da Foz, a estação abarrotava de gente à minha espera: toda a equipa do filme e enervantes aderentes, que muitos eram, além dos infalíveis mirones.
Fomos dali em cortejo automóvel até ao Parque-Cine, incrível barracão no qual, de Inverno, até lhe chovia dentro. Cinco ou seis de nós, com o J. Oliveira Santos, lesto, a comandar, subimos à cabina. Pôs-se o disco, que entretanto secara, no prato do pick-up. Imagine-se a minha consternação, maior ainda, sem dúvida, que a dos outros: a voz do Pessa, mas já um tanto grave, um tanto perra, a querer dramaticamente extinguir-se: «Céu.., éu... ,éu... da Fi…Fi… (o Oliveira Santos, com o dedo, a fazer girar o disco). Música de…de…de…
* Luís Cajão, As Torrentes da Memória, 1979