5 de fev. de 2008

DEUS E O DIABO

Uma vez um homem tinha que atravessar uma ponte muito velha e quase a cair. Por baixo dela havia um grande fundão, onde passava um rio de corrente muito forte.
Ora como o homem era temente a Deus, pensou em se encomendar a ele antes de se meter à ponte; mas alembrou-se também de que o Diabo podia atentá-lo ou pregar-lhe alguma partida e ficou-se p`ra`li, à entrada da ponte, sem saber se havia de avançar, se voltar para traz.
De repente veio-lhe uma ideia e começou a atravessar o rio com toda a cautela, pé-aqui-pé-acolá, e a repetir sempre:
- Se Deus é bom… o Diabo também não é mau! Se Deus é bom… o Diabo também não é mau!...
Falava assim, já se vê, p`ra contentar a ambos.
Isto foi enquanto não passou a ponte; que mal se viu do outro lado em terra firme, virou-se p`ra traz e gritou:
-Tão bom é um com`ó outro!

In Folclore da Figueira da Foz, coord. Cardoso Martha e Augusto Pinto, 1913

SANTO AMARO

Acendeu-se mais - mais rumoroso e forte­- o estrupidar do foguetório.
A multidão refluía para o adro. Saiam de pinhais -onde se tinham moído com ripànço, sestas doces - gentes apressadas e curiosas.
Ia sair a procissão!
Manuel «Tarzan» tomou o seu lugar de sem­pre. As suas mãos possantes ergueram, sem aparente esforço, a vara do pendão, - que um ligeiro sôpro de aragem enfunava.
Estendia-se uma fila de Irmãos do Santíssimo com suas opas vermelhas; Depois alongava-se a confraria da Senhora dos Aflitos, com vestes azuis.
Nossa Senhora das Dores, com suas setas no peito, surgiu ângustiosa e sofredora no seu andor atapetado de rosas brancas. O suave e lacrimoso rosto da Mãe de Deus, lívido e doloroso, resplandecia, no manto roxo, avivado a oiro, de infinita bondade, de suprema ternura.
Dum janelo, caiu um punhado de pétalas de cravos que incensaram o ar. Nossa Senhora pareceu fixar Anita, Maria Rosa e Belinha, ajoelhadas à sua passagem.
E dir-se-ia que as gemas puríssimas das suas pupilas de Misericórdia, a todas três enlearam, no mesmo piedoso olhar de caridade e per­dão…
A imagem de Santo Amaro, tôsca e velhinha, passou logo de seguida pelo palio, sob o qual caminhava o pároco de Maiorca, conduzindo a sa­grada Custódia. A banda de Santana gemia uma linda mar­cha solene e pomposa. E no coice do préstito, um mar de pessoas acompanhava o cortejo religioso com grada com­postura e respeito, bitolando os seus lentos moveres pelo chouto brando dos toques: os homens, com os chapéus nas unhas calosas e escuras, as mulheres embiocadas nos chales, o seu caçoilinho de fêltro na cabeça, no qual - entre laçarotes e fitas, penas de côres vivas, con­tas de vidro e pequenos espelhos, - refulgiam e cintilavam!
Dada a volta ao burgo, retornada a procissão à pequenina igreja, foi dado começo ao passo mais curioso e característico do festival em honra e louvor de Stº Amaro da Boiça – a venda em leilão de todas as oblatas.

In As viúvas do Rentão de Raymundo Esteves