23 de out. de 2007
PALHEIROS NA COVA GALA
Não obstante, e como em Mira, encontram-se na Cova habitações sem estacas, principalmente na região mais distante do mar e já sob o abrigo das que se dispõem em frente; mas aqui o número de palheiros que a estacaria suporta é bem maior embora não atinja, ao que parece, o número dito.
Disseminados, às vezes em arruamentos, abrangendo entanto uma área vasta, os que mais perto ficam da água, fincam-se sob pilares, que, à vista, medem três metros e até mais.
De ordinário, porém, a altura, como em Mira, oscila entre um metro e dois, e nunca atinge, como em Vieira, cinco e além. Sem excepção a forma é rectangular e o acesso faz-se por escadas que dão para uma ou duas portas do edifício. A cobertura, primitivamente de colmo, conforme a tradição, está toda substituída, e num ou noutro caso raro que ainda havia, realizou-se vai em pouco. Em Mira o palheiro é, uma ou outra vez, pintado exteriormente; na Cova quase todos -a vermelhão no corpo geral do prédio, a cores claras nas guarnições.
Como geralmente em todas as povoações costeiras, ter casa própria, na Cova de Lavos, é uma aspiração suprema e quase sempre realizada, ou ela seja modesta e custe vinte libras, ou vasta e folgada e vá até às cem. Depois há os reparos e a substituição frequente das estacas, e, se a prosperidade ajuda, tingem-se de cal interiormente.
Dentro o aceio, de que a bilha de água sempre coberta com um pano alvo de linho é um traço já proverbial. Das imediações, manifesta-se no aspecto de soalhos e paredes, na disposição dos móveis e na exclusão dos apetrechos de pesca menos limpos. Para estes destinam-se velhos barcos já inúteis, como em Buarcos; e por fim, como subsídio previdente a uma indústria de natureza essencialmente aleatória, o pescador da Cova cultiva terrenos areentos próximos que aluga ou de que se apossa e donde obtém alguns legumes, cereal, tubérculo, a vinha mesmo.
Ora o aspecto desta povoação, com o solo incessantemente revolvido, mas instalada como numa depressão, dá a imagem, talvez aproximada, de uma aldeia lacustre.
Publicada por António em 6:34 AM
21 de out. de 2007
AINDA A REPÚBLICA
Mas no dia 17 de Outubro a chamada epidemia estava no auge. Nas farmácias não se conseguia entrar: estavam cheias de pessoas que ansiosamente queriam comprar medicamentos. Médicos não se encontravam: por mais que se telefonasse e procurasse não havia. O povo ainda não tinha consciência do que se passava mas já então estava a morrer muita gente.
*In, Memórias, Ernesto de Barros, 1982
Publicada por António em 9:11 AM
15 de out. de 2007
GRUPO CARAS DIREITAS
Presidente: Joaquim Marçal Carrega; Secretário: Carlos Cruz Oliveira; Tesoureiro: António Augusto da Gama.
Os restantes 12 fundadores foram: Joaquim Rodrigues da Silva, António Caetano Ferreira, José Feteira, António Marques Murta, José Amorim Guerra, Augusto Alves Abreu, José Baptista Soares, António Gomes Pinto, Augusto Maria Henriques, José Cardoso de Oliveira, Alberto Cardoso de Oliveira e José Romão.
O Grupo tinha por finalidades praticar a "Instrução, Beneficência e Recreio", tendo sido aprazado comemorar, como data da sua fundação, o dia 1º de Dezembro por ser o aniversário da Independência de Portugal.
A sua primeira sede foi numa pequena casa na rua Governador Soares Nogueira, cedida graciosamente pelo seu proprietário e director do Grupo, António Gama, seguindo-se uma outra na mesma rua, e depois no Teatro Duque, pelo aluguer do qual, pagavam 60$000 réis anuais.
Em 31-III-1913 é feita a fusão com o Sport Grupo Buarcosense, que tinha uma filarmónica, e como a sede entretanto se tornasse acanhada, três anos depois mudam-se para o Teatro Trindade, tendo passado a designar-se de Grupo Caras Direitas.
Após muitos sacrifícios constroem a sua sede própria que é inaugurada em 6-V-1928, a qual dispõe de uma excelente sala de espectáculos com uma capacidade de 510 lugares onde se têm realizado sessões cinematográficas e teatrais, não só pela sua secção cénica como por consagradas companhias nacionais.
O seu palco que reúne as melhores condições técnicas, já foi pisado por artistas como Adelina e AuraAbranches, Alves da Cunha, lida e Dinah Stichini, Amélia Rey Colaço, Robles Monteiro, Berta de Bívar, Álvaro Benamor, Samuel Dinis, Camilo de Oliveira, José Viana, Mário Santos, Raul Solnado e outros, dando-se até a curiosidade de o popular actor Camilo de Oliveira ter nascido num dos seus camarins.
Ao longo da sua existência a secção cénica do Caras já representou centenas de peças de teatro desde dramas, comédias, farsas, operetas e revistas. Este género teatral tem predominado no Grupo, destacando-se entre as de maior sucesso: "Caldeirada à Pescador", "Nortada Rija", "Onda Marítima", "É Tudo Terra", "Em Águas de Bacalhau", "Um Mar t'Alimpe", "Sardinha na Brasa", "Gente do Mar" e "Cantarinha Vai à Fonte", que proporcionaram largas dezenas de representações, não só em Buarcos como em diversas terras dá país.
De notar que todas as revistas atrás referidas foram musicadas por José Traqueia Bracourt, sendo da autoria de Vasco da Gama e Jorge Bracourt..
Se os êxitos alcançados pela secção cénica se devem aos méritos dos seus amadores, uma parte vai para os ensaiadores, que foram os seguintes: António Gomes Pinto, Manuel Monteiro, José Gaspar, Constantino Nunes da Silva, António Neves, José Goltz de Carvalho, Mário Santos, António Sousa, Manuel Pereira da Silva, João Alves Fernandes, Severo Biscaia, Eduardo Matos, Jorge Bracourt, José Fernandes dos Santos, Mário Bertô e Dr. António Gouveia de Carvalho.
Em Maio de 1931 e durante alguns anos funcionaram no Grupo aulas de instrução primária, desenho e ginástica.
Nos dias 12 e 13 de Junho de 1938 realizou-se um arraial de Santo António, estreando-se um grupo de jazz privativo do Grupo e o "Rancho das Cantarinhas" (…). Da parte musical do rancho foi incumbido Alberto Machado e a coreográfica ficou a cargo de Joaquim Romão.
Em 1-XII-1982 foi inaugurado o Pavilhão Gimnodesportivo a cuja cerimónia presidiu o Ministro das Obras Públicas de então, Eng. Viana Baptista.
(…) Em Dezembro de 2003 um incêndio destruiu o palco (entretanto recuperado).
In, Monografia de Buarcos de Fausto Caniceiro, 2004
Publicada por António em 4:17 AM
8 de out. de 2007
POETAS FIGUEIRENSES
O TEU SORRISO
No teu sorriso, leve como a cassa
Do teu Vestido de ir flanar à praia,
Vive a mimosa e perturbante graça
Da folha tenra e verde d`uma olaia.
Na sua macieza de Cambraia,
Quando em mim poisa – Gaze que esvoaça –
Dá-me a impressão nervosa d`uma saia
Roçando por Tapetes quando passa.
Entre o velludo-roxo das olheiras,
Fortemente vincados a nankim
Brilham-te os olhos-rúbidas fogueiras.
E os teus lábios sangrentos de carmim
- Azas d`insecto, trémulas, ligeiras –
Riem, sorrindo, manchas de setim…
Setembro 1917 António Amargo
Publicada por António em 3:08 PM
A PESCA DO PILADO
É bastante procurado pelos lavradores, que o usam como adubo no cultivo das suas leiras, sendo riquíssimo em matérias orgânicas azotadas, que existem, segundo as analises na elevada percentagem de setenta por cento! As estatísticas acusam uma produção de 98:244$000 reis, média geral nos ultimos quinze anos.
Na costa norte de Portugal é conhecido por diferentes nomes: patêlo, do Minho ao Lima,; pilado, d`aqui até ao Douro; mexoalho ou escasso, para o sul até Aveiro e Figueira da Foz. Tem a forma circular, com cinco centímetros de diâmetro em média, couraça lisa de a cor acastanhada escura, e o ventre branco.
A sua pesca faz-se com regularidade em quasi todo os portos da costa ocidental portugueza, sendo comtudo muito mais importante na costa norte do paiz. As embarcações empregadas n`ela são as bateiras e varinos, pequenos barcos de fundo chato, realisando-se sempre à vista e às vezes, a certa distancia d`ela, unicamente em condições de tempo bonançoso, sobretudo nos mezes de Agosto e Setembro, e ainda assim, os desastres são frequentes porque os pescadores com o seu espírito ganancioso, carregam em demasia as suas pequenas e frágeis embarcações e, não raras vezes, ao atravessarem a arrebentação das ondas, junto à praia, no regresso da pesca, são vitimas da sua imprudência. E n`estes desastres, a que tantas vezes temos assistido, quando não ficam sem as vidas, quasi sempre perdem barcos e aparelhos, e, sempre, o produto da pesca d`aquele dia, o que representa algumas horas de laboriosas fadigas e canseiras.
Em geral os pescadores largam da terra na vazante e regressam na enchente seguinte, trabalhando em regra de dia quando encontram o pilado em profundidades superiores a 20 metros, preferindo a noite no caso contrario, porque segundo dizem quando pescam de dia em pequenas profundidades o pilado distingue facilmente a rede e fogem dela, abrigando-se na areia do fundo.
As redes do pilado são formadas por um saco de feitio vulgar, com três a quatro metros de fundo e de dez a doze de circunferência de boca, da qual partem, em direcções opostas, duas peças de rede, denominadas mangas, que têm aproximadamente de comprimento trinta metros (…)
A pesca pode realizar-se com o concurso de dois barcos ou de um só: no primeiro caso, chegados os barcos ao local próprio, um deles fundeia deixando larga porção de amarra, conservando a bordo o chicote do cabo de um dos calões da rede; o outro barco parte, largando a rede, que mergulha até ao fundo e dispondo-a de forma circular e, depois, navega até atracar ao primeiro, conservando a bordo o chicote do cabo do calão, que foi largado em ultimo logar. (…) Por este processo não se limita esta rede a apanhar apenas o pilado; como é natural ela colhe todo o tipo de peixe de diversas espécies e, algum, de bem diminutas dimensões devido ao pequeno tamanho das malhas (…)
O pilado logo que é descarregado na praia vende-se aos lavradores que o vêm procurar com os seus carros de bois ou outros meios de transporte, chegando por vezes a ser muito disputado e obtendo preços relativamente elevados.
É em seguida lançado nas terras sem outro preparo, às vezes ainda vivo como sai do oceano.
* Mesquita de Figueiredo in Ilustração Portuguesa
Publicada por António em 2:27 PM
2 de out. de 2007
A REPÚBLICA
Em 1910 eu tinha 9 anos. A nossa habitação era na rua da Lomba e o meu pai tinha um pequeno escritório no rés-do-chão. No dia 3 de Outubro à noitinha o meu pai disse-me: “Vais ser um homenzinho e quero-te dizer uma coisa. Rebentou em Lisboa uma revolução para proclamar a República. Hoje aqui não sabemos mais nada”. Mas no dia seguinte, 4 de Outubro, o meu pai não veio almoçar e à noite não veio jantar. Não sabíamos dele e, ao entrar da noite, minha Mãe começou a ficar inquieta, não sabia o que havia de fazer. A cidade estava agitada, corriam muitos boatos, na madrugada do dia 5, perante a inquietação de minha mãe a minha avó, que tinha grande ascendente sobre meu Pai, resolveu-se afazer alguma coisa. Mandou um empregado procurá-lo pela cidade e dizer-lhe que ela lhe queria falar; ele não apareceu à hora matutina do primeiro almoço, e contou que, de pé, dum banco da praça Nova, tinha conseguido pelo seu prestígio político, manter ordeira toda a população agitadíssima pela vitória da República em Lisboa.
Nos dias seguintes, talvez nos dias 5 e 6 de Outubro, eram manifestações e cortejos por toda a cidade. Vivas, discursos, a cada paragem, homens roucos de tanto gritar. Meu pai seguia nessas manifestações e eu acompanhava-o. Um dos tribunos mais em evidencia era o Snr. António Lino Franco, farmacêutico na Praça Velha. Nas manifestações as filarmónicas tocavam incessantemente a “Portuguesa”, o nosso hino. Em seguida foi a mudança da bandeira azul e branca, da Monarquia, pela verde rubra da República, nos edifícios públicos. No forte de Santa Catarina deixaram-me puxar a adriça para içar a bandeira verde-encarnada. Possuo uma fotografia da cerimónia.
Manuel Gaspar de Barros, Memórias
Publicada por António em 5:04 AM
25 de set. de 2007
O TEATRO PRÍNCIPE E O GINÁSIO
Creio recordá-lo bem: o rés-do-chão, de pé direito, alto, cheio de portas, o primeiro ainda com três sacadas em fachada principal, frente à doca desassoreada, com um terraço aberto com varanda de balaústre, a cada esquina, tendo à entrada um largo vestíbulo, por baixo do salão da frente, onde havia dois bilhares e uma sala de jôgo, de cada lado.
O vestíbulo dava para um corredor, donde se entrava para a plateia e se subia, de ambos os lados, para as duas ordens de camarotes, para o salão e para as varandinhas junto ao teto.
No rés-do-chão, à frente, de cada lado do vestíbulo, por debaixo dos terraços, guardavam-se as guigas dos treinos e das disputadas competições com a Associação Naval 1.° de Maio.
No Gimnásio juntava-se muita gente moça da Figueira e nêle pontificava um desportista completo, recém-formado em Filosofia, enérgico, desembaraçado e aprumado, com a sua barba ruiva em bico, o Dr. António César de Almeida Rainha.
Por lá passaram os irmãos Franco, e como figura destacante, de rara distinção, o Álvaro, meu querido amigo, condiscípulo e companheiro de casa, em Coimbra, advogado consideradíssimo no fôro de Lisboa, onde é, também, autoridade em assuntos internacionais de diplomacia e de Finanças.
O Gimnásio tinha sido inaugurado no primeiro de Janeiro de um ano qualquer, e em todos os anos seguintes, nesse mesmo dia ia festejando a sua idade crescente, em sessões solenes, com música, discursos e bodo aos pobres.
Lembro, também, com nitidez, uma dessas solenidades; no palco, ao centro, a mesa de honra, a que presidia invariavelmente uma respeitável figura local, o comendador Aníbal de Melo, com a sua comenda na sobrecasaca, ladeado de dois secretários que alternadamente liam a correspondência recebida, alusiva à festividade.
Atrás, à esquerda, a filarmónica «Dez de Agôsto» e à direita a «filarmónica Figueirense», duas bandas afinadas, que alternadamente tocavam o hino do Gimnásio, e entre elas, representantes fardados dos bombeiros Municipais e dos bombeiros Voluntários, que depois faziam a distribuição do bodo.
A correspondência, uma grande e enternecida lição de bairrismo, vinte ou trinta cartas escritas com larga antecipação, em que os figueirenses dispersos por todo o mundo, especialmente pelo Brasil, África, América do Norte, vinham, lá de longe, felicitar o Gimnásio, pelo aniversário certo, que passava, e endereçavam votos de prosperidade à agremiação bem querida. Lida esta, destacava-se o orador oficial, de fraque, e lembro bem grande parte do discurso, dum dêsses oradores, o Fernando Marques Pinto.
O Augusto Pinto, estudante e literato de espírito cintilante, hoje um grande jornalista, deitava, às vezes, fala dum camarote, inspirado; com gestos largos dos seus braços compridos, e olho apaixonado nalguma costureirinha galante da plateia.
Um dia, ou antes numa madrugada, noite trágica, mais tarde, viria a desaparecer num incêndio total, impossível já de combater, cheio como estava de confetti, duma das suas inolvidáveis noites de Carnaval.
Salinas Calado, A Figueira no dealbar do século XX, conferência proferida em 1941 na Assembleia Figueirense, rep. in Ginásio Clube Figueirense de J. Sousa Cardoso, 1944
Publicada por António em 12:34 PM
24 de set. de 2007
A VELHA AIA
A velha Aia cantando
Vae dobando o brando linho
E a roca devagarinho
Vae dobando, vae chorando…
E a velha Aia cantando
Vae dobando com carinho,
O brando linho d`arminho…
…e vae dobando, rezando…
Lá fora a lua desmaia,
Já cessou a ventania
Sua canção d`agonia…
Só a voz da velha Aia
A dobar o linho brando
Soluça, morre, cantando…
Manuel de Sousa, 1917
Publicada por António em 1:04 PM
22 de set. de 2007
PARA NÃO MAIS SE LER
Finalmente para que não fique ineficaz nesta parte aquella determinação estranhando alias muito ao que então servia de secretario da Câmara que devia por em execução aquella sobredita ordem deixando em boa fé os empregados d`ella acerca de um semelhante livro que mesmo se não abriu nem muitas vezes se abrirá a mim principalmente que me havia retirado a Presidência pela posse do novo juiz de Fora meu antecessor egualmente em boa fé, não podendo eu agora presumir que ele deixasse de fazer o que se tinha determinado e para que se cumpra (…)mando se tranquem para mais se não poderem ler nem por qualquer forma interpretar todos os assentos e quaisquer actos da epocha horrorosa em que o infame usurpador regeu em Portugal (…)
Figueira, 8 de Setembro de 1834 – o presidente da actual câmara interina António Roberto de Oliveira Lopes Branco.
*Livro 6 das actas rep. em Revista da Figueira, nº 2, Out 1917
Lopes Branco foi juiz de Fora interino da Figueira de 8 de Maio a 17 de Setembro de 1834. Neste ano, os liberais triunfaram sobre D. Miguel, que foi expulso do país nos termos da Convenção de Évora Monte.
Publicada por António em 9:43 AM
18 de set. de 2007
AINDA O CINEMA...
Jamais o ingénuo fantasista entrara num estúdio. De cinema, portanto, não sabia nada. O operador era Manuel Santos, antigo comerciante com alguns meios de fortuna. Este émulo de Paz dos Reis possuía uma câmara manual, assaz rudimentar, com que se comprazia, por desfastio, a fixar as regatas, cenas de praia e pesca, touradas e concursos hípicos. Com todos os defeitos, por conseguinte, de quem se habituara a ver no bilhete postal o supra-sumo da arte cinematográfica. .
J. Oliveira Santos «vestia-se» de realizador, isto é, enfiava uma camurcina branca, com o cinto a vincar-lhe fortemente o estômago, acocorava-se junto do tripé, e gritava, pelo majestático megafone, com muita ênfase, muito brio, estas duas expressões apenas: «filma» e «corta». Como não havia som, como o som não era síncrono, nem havia iluminação adequada, nem, enfim, se atendia àquele mínimo de preceitos técnicos necessários a um filme, o resultado estava bem à vista: umas figuras pasmadas de reportagem de cinema mudo, a abrirem e a fecharem puerilmente a boca, a derivarem algo bruscas e grotescas pela pantalha e a gesticularem em conformidade. Uma parvoíce. . .
O filme, é bom que se esclareça, embora pretendesse ser uma obra de fundo, com acção e personagens várias, visava a propagandear as belezas da Figueira. Como, porém, faltasse o dinheiro para levar a empresa por diante, decidiram, decidiu J. Oliveira Santos, começar pelo fim, quer dizer, fazer um «trailer», uma amostragem capaz de revelar às forças vivas as virtualidades hollywoodescas da terra, e com isso obter os fundos necessários à ultimação da fita: Uma originalidade; creio bem, em toda a história do cinema. .
E os actores? Ora vejamos. Ela chamava-se Madalena Ótão (hoje Madalena Soto), e ele, na vida real marido dela, Manuel Brandão. .
Este Manuel Brandão, filho embora de pais portugueses, era brasileiro. Autor de dois livrinhos de versos (falta-me a paciência para ir lá acima vasculhar a biblioteca), era um moço simpático, esguio e moreno, porém doentiamente ciumento. Algo como um cantor de tangos da época.
Enquanto, por exemplo, a mulher levantava voo do campo Humberto Cruz, entregue a um piloto qualquer, ficava-se ele, cá em baixo, com um grupo de amigos, a rilhar o lábio nervoso.
Entre os autores da música do famigerado «Dois Corações... Um Destino», estava eu, que completara pouco antes dezoito anos. Tudo então eram pretextos para almoçaradas e jantaradas de todos os intervenientes no filme. Comia-se e bebia-se desalmadamente. Dinheiro,- donde vinha, não sei. Havia contudo o Luís Lopes de Oliveira, filho de um pesado negociante de vinhos e azeites, que sempre me parecera sensível à cheirosa frescura da Madalena. E umas letras que o Cândido J. Oliveira Santos ia sacando do banco onde estava empregado.
Uma noite, eu a chegar ao Bairro Novo e o Luís Lopes, com toda a equipa, muito obediente, à sua volta, a dizer-me, assaz decisivo e patrocinador:
- Você tem de partir amanhã de manhã para Lisboa. É preciso contratar a Orquestra Sinfónica Nacional para gravar a música do filme.
Tímido, varado, aquilo pareceu-me, confesso, excessivo. Mas quem era eu para contrapor fosse o que fosse? Aliás, o que se pretendia de momento, agora que se aproximava a estreia do «trailer», era que eu gravasse ao piano os temas principais, que haviam de acompanhar os 160 metros de película até então impressionados. Passaram-me para as mãos uns contos de réis e aí vou eu (no fundo muito satisfeito) a caminho de casa a preparar as malas.
Desembarquei em Lisboa por volta da uma e meia da tarde. Corria o mês de Julho de 1938- um Julho ardente e fulgurante que me fez bater as pálpebras quando, soberbo, me dirigi para o Suíço, famoso restaurante à esquina dos Restauradores com o Largo D. João da Câmara.
(…) Meia hora depois entregavam-me gratuitamente o disco que me apressei a ir guardar no hotel. Andei na pândega duas noites e, na véspera do dia da estreia do «trailer», dei-me ao cuidado de mandar um telegrama ao J. Oliveira Santos: «Chego amanhã de manhã. Abraços.»
O calor, em Lisboa, era de estucha. Ainda cedo, aí pelas oito, já o comboio ardia sob as cúpulas de ferro do Rossio. Tomei com muito garbo a minha 1.a classe - é sempre bom, confortável e reconfortante, viajar por conta alheia -, e arranjei lugar ao pé da janela. .
O disco, em vez de o ter metido na mala, não, senhor. Levava-o à parte, talvez para poder mirar-me nele, gozar-me do seu corpo redondo e flexível. E, agora, onde arrumá-lo? Em cima da mala, podia escorregar; na rede, ficaria a bem dizer suspenso e portanto sem apoio. Eureca: debaixo do banco. Aí é que ele iria bem.
Lá para as bandas das Caldas, e eu, satisfeito, bastante satisfeito, a degustar por antecipação aquele êxito - tinha, não o esqueçamos, dezoito anos -, começo a ver qualquer coisa como uma bicha negra a serpentear pelo chão da carruagem, uma escorrência repugnante de alcatrão.
Aflito, sufocado, curvo-me, espreito, surpreendo com horror o disco convertido numa espécie de manteiga negra que vergonhosamente alastrava aos altos e baixos pelas réguas do pavimento. (…) Quando, por volta da uma da tarde, cheguei à Figueira da Foz, a estação abarrotava de gente à minha espera: toda a equipa do filme e enervantes aderentes, que muitos eram, além dos infalíveis mirones.
Fomos dali em cortejo automóvel até ao Parque-Cine, incrível barracão no qual, de Inverno, até lhe chovia dentro. Cinco ou seis de nós, com o J. Oliveira Santos, lesto, a comandar, subimos à cabina. Pôs-se o disco, que entretanto secara, no prato do pick-up. Imagine-se a minha consternação, maior ainda, sem dúvida, que a dos outros: a voz do Pessa, mas já um tanto grave, um tanto perra, a querer dramaticamente extinguir-se: «Céu.., éu... ,éu... da Fi…Fi… (o Oliveira Santos, com o dedo, a fazer girar o disco). Música de…de…de…
* Luís Cajão, As Torrentes da Memória, 1979
Publicada por António em 3:48 PM
17 de set. de 2007
JOÃO CÉSAR MONTEIRO (1939-2003)
“(...) fixei-me com a família em Lisboa, para poder prosseguir a minha medíocre odisseia liceal. Instalado no colégio do Dr. Mário Soares, acabei por ser expulso ao contrair perigosíssima doença venérea. Pensei, então, que entre a política e as fraquezas da carne devia existir qualquer obscena incompatibilidade e nunca mais fui visto na companhia de políticos. (...) Filho que era de meu pai, atravessei senhorialmente muitos e variados empregos, mas em breve me apercebi que já não podia olhar o mundo da mesma maneira. Fui até Paris para ensaiar até onde me era possível ir. Não me era possível ir muito longe. Meses depois, «ayant connu pas mal de choses» era repatriado. Em 1960, encontrei o Sr. Seixas Santos que teve a bondade de me ensinar um pouco do muito que sabe de cinema.(...)”
“(...) trabalhei como assistente de realização do Sr. Perdigão Queiroga e admito que poderia ter aprendido mais qualquer coisinha se não tivesse sido tão presunçoso. Em 1963, na injusta qualidade de bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, parti para Londres a fim de frequentar a London School of Film Technique. Suponho que nunca por aquela escola passou aluno tão mau, mas nesse passo não tive grandes culpas no cartório: é que de facto os ingleses não nasceram para o cinema. (...) Em 1965, conheci o Paulo Rocha e os seus Verdes Anos, o Fernando Lopes e o seu Belarmino. Tomei-me de amizade pelo Fernando e de amores pelo filme do senhor Rocha, cujos hábitos de anacoreta o tornavam pouco acessível.”
“(…) Nesse mesmo ano, tentei pôr de pé um projecto de filme em 16 m/m, intitulado Quem espera por sapatos de defunto morre descalço. Dois dias de filmagens e rabinho entre as pernas. Falta de xis.(...) De novo na vida civil, os meus excessos ultra-românticos, temperados pela mais nobre profundidade sentimental, tiveram enfim (ai filhas de Sidon) a justa consagração, o que não me livrou de amouchar durante um ano como escriba de Filmes Castello Lopes, Lda.”
(…) O filme começou por ser relativamente mal recebido junto do Mecenas (quereriam ópera por 180 contos?), continuou, pateado num festival no Sul de Espanha e foi friamente acolhido pelos críticos presentes em Nice, aquando da chamada Semaine du Jeune Cinéma Portugais. Foi pena, porque me teria dado jeito, sobretudo no que toca à fruição de algumas benesses locais, mas já que não pôde ser, paciência! Tirando isso, aproveitei a estadia niceoise para comprar um lindo fato de banho de duas peças com a nota de 100 francos que o João Bénard me emprestou e ameacei partir uma garrafa de tinto na cabeça do Cunha Teles que, impensadamente, me chamou oportunista.”
(…)"Andar no cinema para ser contaminado por gravíssimos defeitos de carácter não é coisa que se faça a um velho católico e apostólico romano. Não acredito que se possam fazer bons filmes em pecado mortal e, por isso, espanta-me que a cólera do Senhor não se tenha ainda abatido sobre mim. É certo que o Senhor conhece a extrema pobreza em que vivo e, não obstante os caminhos da perdição serem infinitos, tem-me guiado certeiramente no exercício da minha arte."
* Da obra do cineasta, A Minha Certidão (&ETC, nº 4, 28.02.1973).
Publicada por António em 4:24 AM
13 de set. de 2007
SANTA MARIA DE CEIÇA*
Estou-me agora a lembrar de uma certa terra, entre dunas que os pinhais cobriram, e o campo aberto pelas águas que descem de Sicó em busca do Mondego, e o Mondego leva ao mar. O nome que lhe dou, vou agora apenas segredá-lo, já que me não deu ela licença para o revelar. E ela sabe que nem a quero trazer para as bocas do mundo, nem ela é mais que as suas irmãs, dispersas naquela fita de chão que tem ao sul a Saunum dos Romanos e ao norte o Monte Maior da Reconquista, e que a poente se debruça sobre a Figueira e a nascente adivinha Coimbra, a sempre desejada.
Não. Não é esta uma língua de terra que claramente fale de coisas espirituais. Até as tradições do povo se foram afogando e enleando na poderosa floração urbana. Por isso, é mais profunda a voz que sobe da terra, como a descarnar todas as raízes e a forçar os homens a reconhecerem-se nos sinais.
Não foi Coimbra, a Rainha Desejada, que deu vida a este rincão. Nem a Figueira, nem Montemor, nem Soure. Como tantas outras regiões portuguesas, esta (feita da minha terra e das suas irmãs) teve por pai um Rei e por mãe uma ordem religiosa. A minha «pátria chica» descende de D. Sancho, o Velho, e do mosteiro de Ceiça, um dos de Cister.
Pelos anos em que nascia António de Lisboa e (diante de Deus e dos homens) crescia e todo se dava eucaristicamente e depois se recolhia em Coimbra e, do esplendor da Santa Cruz, subia à ermidinha de Santo Antão dos Olivais - por esse tempo de poisio das armas e de arrotear da gleba-, o Povoador, lá no plano da vontade soberana, decidia que estas dunas (ainda hoje recheadas de fósseis marinhos) e esta lezíria de boas águas começassem a dar berços e pão. Ao mesmo tempo, Santa Maria de Ceiça (que o Destino traiçoeiro havia de tornar, séculos volvidos, em barulhenta fábrica de descasque de arroz!), por seu lado actuando no plano próprio das Regras de criação de S. Bento, ia ensinando a gente rude (vinda sabe Deus donde) a lavrar, semear, plantar, podar, enxertar, colher, enceleirar, prever - e, em tudo, orar e amar.
Ninguém veio depois que, destas boas coisas, soubesse tanto. O azeite, o vinho e a broa foram saindo da nossa mesa. Os Vigários de Ceiça foram perdendo o nome (que respondia, na memória dos povos, à antiga função de representantes do Abade em cada uma das freguesias nascidas do mosteiro) e até fugindo das igrejas e dos povoados rurais, para se concentrarem na sede do arciprestado. Já pela Páscoa santa não corre as ladeiras e as vielas, visitando todos os vizinhos, a Cruz do Senhor. Para encomendar os mortos na hora do beijo com a terra, chega uma estola envergonhada a manchar de roxo um casaco qualquer. Já o povo não guarda (a não ser por acaso) os domingos e dias santificados. Já a bem dizer ninguém pára e se benze ao tocar das Trindades. E as velhas ruínas (ruínas de ruínas, como dizia, de outras, o nosso mestre Hipólito Raposo) do que foi, há séculos, meio celeiro meio convento, e as últimas pedras da última capela de quinta dos frades estremecem um adeus ao Sol e, como pó que foram, também elas voltam ao pó.
Lá por dentro da minha igreja (erguida durante a Restauração, para aproximar mais o povo dos campos fecundos, enquanto a Igreja Velha ia ficando apenas um nome na memória dos velhos) já não há sinais das antigas sepulturas. À volta das paredes muito brancas (Deus as conserve!), já as últimas ossadas do antigo cemitério saltaram, ao encontro dos ossos novos, que, lá ao alto, desde os tempos da anti-Maria da Fonte, dominam o horizonte dos vivos.
Terras por onde passa (a meia hora) a linha dos comboios e, um pouco mais além, a estrada de Lisboa ao Porto não podem ser terras de ceara farta do Espírito. A não ser, meu Deus, que seja certo que o Espírito sopra donde quer e para onde quer. E pode ser que lá venha o dia em que novos Povoadores e novas Cisteres, como os outros que despertaram dos séculos de ferro, tragam de novo a bênção. Já nem sei se de azeite, de vinho, de broa e de carqueja, de tojo e de giesta, de caça miúda e de couves mais altas que um homem - mas de Alegria, Senhor... Da alegria que nasce de um coração que aprendeu e compreendeu a antiga e veneranda regra: «Ora et labora!».
* Texto de Henrique Barrilaro Ruas, in Cultura Portuguesa, nº 2 , Jan. 1982
Publicada por António em 4:09 AM
11 de set. de 2007
FIM DE ESTAÇÃO
A essa hora já a praia de banhos formigava de gentana. Era Outubro e ainda centenas de barracas se alinhavam, simétricas, pelo areal, como um acampamento bizarro de um grande exército mourisco – os topos abicados, reluzindo de brancuras. Nas esplanadas cimeiras, faiscavam grandes chapeirões, de lonas vistosas e garridas. Os galhardetes de cores berrantes, que demarcavam as companhias dos banheiros, desdobravam-se com graça. Uma avioneta amarela passeava pelo alto como uma libélula doirada. E a espuma das ondas que se desenrolavam lentas e mansas lembrava uma renda de prata a vestir a orla da saia de lhama de seda, que o mar punha à roda da Figueira.
(…) Corriam mulheres apressadas e lestas acompanhando a rota do barco. Garotada bravia pinchava, paredão fora (…).
O mercado com as marquesas de ferro, o jardim público – mancha de verdura reluzente – o Cais, as duas praças, de jeito pombalino, com seus monumentos, a avenida formosa e ribeirinha ladeada de árvores roliças, tudo foi catado, com acesa curiosidade, por suas pupilas irrequietas.
O lugre desceu até ao trapiche. Arreou o ferro. Despediu o reboque.
*In João Fané, banquista, de Raymundo Esteves, 1942
Publicada por António em 9:21 AM
9 de set. de 2007
* VIAGEM NA NOSSA TERRA
D. AFONSO HENRIQUES: Não me contive e explodi com braveza: «Calai-vos, Dom Cardeal, que mentis pela gorja! Ensinar-me a fé!!! Tão bem em Portugal como em Roma sabemos que Cristo nasceu da Virgem Maria, que como vós outros cremos na Santa Trindade!
GONÇALO DE SOUSA: Os vossos olhos chamejavam de furor...
LOURENÇO VIEGAS: Toda a ousadia do Legado desapareceu como fumo. E sem afinar com resposta para vos dar saiu do alcácer... (rindo)
D. AFONSO HENRIQUES: Pois foi assim, Lourenço Viegas... Dei a Coimbra um Bispo que me excomungou, porque assim o quis o Papa. Dei-lhe outro para me absolver, porque assim o quis eu.
LOURENÇO VIEGAS: (comentando, a rir) O Bispo Negro!... (afasta-se uns passos, fica olhando a barra e o rio.) Grande e belo estuário, este do Mondego!... (Antão Fernandes, que tinha entrado momentos antes, ficou-se a observar; aproxima-se de Lourenço Viegas, que parece embevecido na contemplação de Rio e Mar...) I
ANTÃO FERNANDES: E vai assim, largo, grande, até Montemor... (Lourenço Viegas só agora repara nele, olha-o, fala depois)
LOURENÇO VIEGAS: Pelo que dizes, conheces bem o Rio Mondego...
ANTÃO FERNANDES: Conheço muito bem, até Coimbra. Tenho passado a vida aqui, nesta grande bacia do Mondego.
LOURENÇO VIEGAS: Quem és tu? O que é que fazes?
ANTÃO FERNANDES: O meu avô - já morreu há uns anos - era piloto aqui na barra do Mondego; eu sou calafate. Trabalho numa das tercenas que constroem e consertam embarcações. Chamo-me Antão Fernandes. E vossemecê é o senhor D. Lourenço Viegas... (espanto e sorriso deste) Disse-me um rapaz que é carpinteiro de machado e esteve a falar com um marinheiro do barco do senhor Rei D. Afonso Henriques. E até me disse que Vossa Senhoria era Espadeiro... (risos de Lourenço Viegas)
LOURENÇO VIEGAS: Estás bem informado, rapaz... (Transição, rindo) Vejo que conheces bem o estuário do Mondego e o movimento da sua navegação. Mas talvez não saibas que desde os tempos antigos demandavam a foz do Mondego embarcações gregas, romanas, e outras...
ANTÃO FERNANDES: Isso não sabia, não senhor. Mas posso dizer-lhe que vi - há... uma dúzia de anos - (recordando) foi no ano de 1147 - uma coisa grande, que nunca mais me esquece: uma multidão de navios grandes e pequenos, fustas da armada real, galeras, caravelas, abrigadas aqui nesta grande enseada do Mondego, para acompanharem as forças navais da Cruzada que ia conquistar Lisboa.
MARTIM GONÇALVES: (Indo ao Rei) Quando Vossa Mercê desejar subir à Abadia.. .
D. AFONSO HENRIQUES: Lourenço Viegas! (para os outros) Vamos então ver a célebre vinha do Abade Pedro! (Saem todos falando alegremente, com grande animação)
*Extracto da peça de José da Silva Ribeiro (1894-1990), Viagem na nossa Terra
Publicada por António em 8:05 AM
5 de set. de 2007
O FESTIVAL
No campo cultural pode mesmo afirmar-se que é (o Festival de Cinema da Figueira da Foz) uma das raras instituições a projectarem-se internacionalmente, e com ela o nome do país.
(…) Não se pode todavia garantir que o seu percurso tenha sido (…) isento de altos e baixos, de crises e de incertezas, bem como de apaixonadas polémicas. Foi afinal este trajecto algo tumultuoso, por vezes mesmo conflituoso (saudavelmente conflituoso, acrescente-se) que terá provavelmente ajudado a criar uma imagem, definir um estilo, impor uma personalidade.
Em Setembro de 1974 teríamos a 1ª edição do Festival, afastado que foi o espectro da censura que tornava anteriormente irrealista qualquer hipótese de se erguer uma manifestação deste género, com um mínimo de dignidade e representatividade. 1974-1975 são edições de transição, a que se segue um período mais largo (1976-1979), durante o qual o Festival se interroga, em busca de uma identidade, procurando instalar-se em espaço próprio que seja só seu. Isso mesmo parece ter sido conseguido. Os anos de 1980-81 são já de uma certa maturidade (…).
(…) Outro aspecto interessante foram as sessões promovidas pelo Festival em várias localidades da região, bem assim como as extensões do certame a outras cidades: Lisboa, Porto, Coimbra, Aveiro, Guarda, Funchal ….
(…) A partir de 78, sobretudo, mas com maior incidência nos anos de 80-81 o Festival afirmou-se como local de eleição para apresentação pública do cinema nacional (…). O prestígio internacional do Festival foi crescendo, afirmando-se por diversas formas. Depois da presença da FIPRESCI é a vez de a Comissão Internacional para a Difusão das Artes e das Letras pelo Cinema escolher a Figueira para reunir e aí passar a atribuir uma das suas onze medalhas anuais.
(…) O Festival cumpre um papel que de outro modo seria improvável ver-se satisfeito em Portugal : assistir à projecção de obras de países de produção quase desconhecida nos mercados tradicionais.
(…) (A Câmara conferiu) ao Festival a Medalha de Mérito de Ouro da Cidade, uma recompensa merecida pelo muito que o Festival tem feito pela cidade, sua promoção cultural e, inclusive, turística.
(…) Impensável será agora parar a máquina, privar o País de um acontecimento de tamanha repercussão interna e externa.
* Lauro António, Dez anos de Cinema em Festival, Figueira da Foz, 1982
Publicada por António em 8:25 AM
3 de set. de 2007
ANTROPOFAGIA NO CABO MONDEGO
Tão grande era este seu empenho que até os mais pequenos interstícios dos suportes das antas eram cuidadosamente vedados com lascas de pedra!
E com que piedade ele depositava junto do cadáver todo o necessário em armas, utensílios e alimentos, para que os entes queridos pudessem seguir a grande viagem, sem sofrerem privações e quiçá para continuarem no seu sonhado Olimpo a vida deste mundo!
É que tudo isso podia ser consagrado apenas aos restos ósseos daqueles a quem tinham a bestial crueldade de devorarem as carnes?! Os fragmentos de ossos careciam de antas bem vedadas, de armas, de utensílios, de comida? Onde já se viu o canibal nutrir aquelles sentimentos de ternura pelos ossos das suas vítimas?
É preciso sermos razoáveis tanto em ciência como em tudo mais Avançar a uma proposição, quando todos os factos protestam contra ela, é substituir o arbítrio à lógica, e desviar a ciência por veredas tortuosas, onde os prejuízos disputam a palma ao erro.
* António dos Santos Rocha, “A questão da antropofagia nas estações neolíticas da serra do Cabo Mondego”, in Memórias e e explorações arqueológicas, Univ. Coimbra, 1975.
Santos Rocha, (foto) (1853-1910) arqueólogo eminente e jurista de vulto, desempenhou diversos cargos públicos; fundou o Museu Municipal e a Sociedade Arqueológica Figueirense (V. post, Novembro de 2004). Neste texto, o arqueólogo figueirense refuta, em resposta a certa "crítica", conclusões como a seguinte: "que o canibal da serra do Cabo Mondego misturava o cérebro do seu semelhante a alguma bebida, provavelmente no próprio crânio, que era em seguida levado ao fogo e depois partido para lhe explorar os recessos ósseos".
Publicada por António em 10:14 AM
1 de set. de 2007
JOAQUIM NAMORADO (1914-1986)
E chegam navios
De todos os pontos cardeais,
Só eu fiquei
Sonhando os orientes
No cais.
Outros partiram…
- Tantas vezes me chorei perdido
E vencido me arrastei
No sabor das tempestades e dos fados…
Tantas vezes fui o herói da aventura,
O navio naufragado…
E sempre ressuscitei
No cais.
Que em mim vive esta ânsia
Sempre nova
Da largada.
Joaquim Namorado, Aviso à Navegação
Publicada por António em 8:44 AM
31 de ago. de 2007
*DOMINGO À TARDE NA PRAÇA NOVA
Em baixo, no novo caes, quasi em frente da Praça parava o carro americano, despejando a gente que vinha de Buarcos, da praia e do Bairro Novo. Na esplanada ao pé da rampa, alguns serranos das barcas da Foz do Dão estavam encostados a umas pipas vasias. Um zelador municipal, o Caras Altas, policiava passeiando vagarosamente no lagedo da casa do Tribunal, olhando para uma parte e outra com uma posição lorpa de cabeça. Algumas famílias que habitavam as casas da Praça, enfastiavam-se à janella, com os braços pousados no parapeito, ou com a cabeça pezando sobre uma das mãos. (…)
Para baixo via-se uma pequena porção do paredão novo, as partes altas do theatro Príncipe D. Carlos, o guindaste das Obras Públicas pintado de encarnado, a doka onde oscillavam diminutamente amarados os hiates do costeiro, as rascas de Peniche, os cahiques do Algarve, os bateis dos carregamentos do porto e os barcos de transporte do Mondego. Depois, mais além, alastrava-se a largura esverdeada do rio, às vezes cortada pelos botes; avistavam-se os navios de maior lote, ancorados na estacada, com a bandeira da respectiva nacionalidade içada no topo do mastro da popa; mais adiante as marinhas do sal, d’um tom negro, onde se distinguiam parte dos depósitos rectangulares da água do mar; as casas caiadas, espalhadas irregularmente, das povoações de Lavos, Carvalhaes e Regalheiras, rodeadas de pinhaes e de uma vegetação escura; as habitações acanhadas e os moinhos da Galla; alguns denegridos casebres de madeira da Cova e uma grande porção do areal do Cabedello. A uma grande distância avultavam as estaturas enormes, d’uma cor pesada e triste, dos montes que se alongavam para as bandas de Leiria, apresentando uma perspectiva esfumada, um pouco nevoenta, que se ia azulando n’uma graduação insensível para o alto, e na direcção da Vieira branquejava uma larga e comprida tira da costa do sul.
*Gaspar de Lemos, do romance inédito “A Filha do Senhor Silva”, transcrito do Almanach da Praia da Figueira para 1878-1879, 1º ano, p.168-170, rep. em "Ruas e Praças da Nossa Terra II", de Isabel Simões, in Revista Litorais, nº 4, Maio 2006.
Publicada por António em 8:42 AM
28 de ago. de 2007
GASPAR SIMÕES EM "A BOLA"
O team de…A Bola vai alinhar mais um nome – um nome grande das letras portuguesas. Trata-se do dr. João Gaspar Simões – crítico, ensaísta, romancista – que iniciará, a partir do próximo número, a sua colaboração neste jornal.
A presença do ilustre escritor e crítico literário num jornal desportivo constitui, só por si, motivo de geral satisfação. O dr. Gaspar Simões, aliás, como todos os intelectuais contemporâneos, aqui e lá fora, interessa-se pela marcha dos acontecimentos desportivos e lê os jornais da especialidade (…)
No próximo número, o dr. Gaspar Simões iniciará a sua série de “Cartas a um jovem desportista que se interessa por cultura”.
Vale isto por dizer que o dr. Gaspar Simões, todas as quintas-feiras, se dirigirá aos desportistas portugueses para quem não são supérfluos os problemas do espírito, esclarecendo-os, orientando-os, no sentido de que a sua prelecção pelos acontecimentos desportivos seja valorizada por mais directo contacto com a cultura.
*Jornal A Bola, 20 de Março de 1950
Publicada por António em 9:02 AM