25 de set. de 2007

O TEATRO PRÍNCIPE E O GINÁSIO



Voltemos, porém à nossa vida de rapazes, em fins de Natal: à noite íamos até ao Gimnásio, instalado no Teatro Príncipe D. Carlos, construção bonita e risonha, formando o quarteirão, em frente, entre as Ruas do Prín­cipe e Fernandes Tomás.
Creio recordá-lo bem: o rés-do-chão, de pé direito, alto, cheio de portas, o primeiro ainda com três sacadas em fachada principal, frente à doca desassoreada, com um terraço aberto com varanda de balaústre, a cada esquina, tendo à entrada um largo vestíbulo, por baixo do salão da frente, onde havia dois bilhares e uma sala de jôgo, de cada lado.
O vestíbulo dava para um corredor, donde se entrava para a plateia e se subia, de ambos os lados, para as duas ordens de camarotes, para o salão e para as varandinhas junto ao teto.
No rés-do-chão, à frente, de cada lado do vestíbulo, por debaixo dos terraços, guardavam-se as guigas dos treinos e das disputadas competições com a Associação Naval 1.° de Maio.
No Gimnásio juntava-se muita gente moça da Figueira e nêle pontificava um desportista completo, recém­-formado em Filosofia, enérgico, desembaraçado e apru­mado, com a sua barba ruiva em bico, o Dr. António César de Almeida Rainha.
Por lá passaram os irmãos Franco, e como figura destacante, de rara distinção, o Álvaro, meu querido amigo, condiscípulo e companheiro de casa, em Coimbra, advoga­do consideradíssimo no fôro de Lisboa, onde é, também, autoridade em assuntos internacionais de diplomacia e de Finanças.
O Gimnásio tinha sido inaugurado no primeiro de Janeiro de um ano qualquer, e em todos os anos seguin­tes, nesse mesmo dia ia festejando a sua idade crescente, em sessões solenes, com música, discursos e bodo aos pobres.
Lembro, também, com nitidez, uma dessas solenida­des; no palco, ao centro, a mesa de honra, a que presidia invariavelmente uma respeitável figura local, o comenda­dor Aníbal de Melo, com a sua comenda na sobrecasaca, ladeado de dois secretários que alternadamente liam a correspondência recebida, alusiva à festividade.
Atrás, à esquerda, a filarmónica «Dez de Agôsto» e à direita a «filarmónica Figueirense», duas bandas afina­das, que alternadamente tocavam o hino do Gimnásio, e entre elas, representantes fardados dos bombeiros Municipais e dos bombeiros Voluntários, que depois faziam a distribuição do bodo.
A correspondência, uma grande e enternecida lição de bairrismo, vinte ou trinta cartas escritas com larga ante­cipação, em que os figueirenses dispersos por todo o mundo, especialmente pelo Brasil, África, América do Norte, vinham, lá de longe, felicitar o Gimnásio, pelo ani­versário certo, que passava, e endereçavam votos de pros­peridade à agremiação bem querida. Lida esta, destacava-se o orador oficial, de fraque, e lembro bem grande parte do discurso, dum dêsses oradores, o Fernando Marques Pinto.
O Augusto Pinto, estudante e literato de espírito cin­tilante, hoje um grande jornalista, deitava, às vezes, fala dum camarote, inspirado; com gestos largos dos seus bra­ços compridos, e olho apaixonado nalguma costureirinha galante da plateia. ­
Um dia, ou antes numa madrugada, noite trágica, mais tarde, viria a desaparecer num incêndio total, impossível já de combater, cheio como estava de confetti, duma das suas inolvidáveis noites de Carnaval.


Salinas Calado, A Figueira no dealbar do século XX, conferên­cia proferida em 1941 na Assembleia Figueirense, rep. in Ginásio Clube Figueirense de J. Sousa Cardoso, 1944