19 de dez. de 2007

PESCADORES E SEUS BARCOS

Faz-se a pesca da sardinha no Inverno, na Figueira. Para salgar, a melhor sardinha é a de Janeiro. As redes empregadas nesta pesca são as chamadas SARDINHEIRAS ou PEÇAS. Durante o Verão saem os pescadores a apanha da raia, pescada, faneca, rodovalho, linguado e congro.
Recolhendo os lucros do trabalho, não há nesta gente o cuidado de os regular para se cobrir das vicissitudes da vida, que não são poucas. É largo e bem acentuado no pescador o espírito de imprevidência. Por isso comem e bebem todos os ganhos, enquanto duram, os quais, bem repartidos, davam margem a afrontrar os maus dias de ociosidade forçada, os da tempestade quando o mar urra temerosamente como cem leões de ventre rasgado, quando o mar se alça contorsionado, em convulsões monstruosas e frenéticos remoinhos, a querer engo1ir a terra, a querer escalar o céu...
A horas de fartura, poucas, correspondem horas de escassez, muitas. E, já se sabe, um dos meios deste desperdiçar é o vinho.

Guarda esta gente do mar uma viva indiferença por tudo. Até, talvez, será este espírito de indiferença bem maior que o da imprevidência. Quebra-a, porém, o vinho e só ele anima os pescadores. Mas lutando a toda a hora com a morte nas fainas do mar trai­çoeiro quantas vezes! - de que lhes valerá o arrecadar, o dar valor às coisas que os outros estimam!
Quando não pescam, não sabem o que fazer. Daí, envoltos em suas ásperas farpelas de saragoça curtida, carapuças negras a tombar-lhes sobre uma orelha e de cachimbo queimado a fumegar densos vapores, segue até às vendas com zurrapas reclamadas a rótulos sedutores do bom verdasco e bom maduro, a gastar o tempo na bela sociedade e o cabedal na bela pinga.
Pelas portas de seus casebres vivem as mulheres e crianças a conversar, a coser, a fazer meia e também a catar-se. Vezes por outras, acontece o 1amuriarem sua triste vida ao raro caminheiro de seus bairros. No fundo, toda a vida do pescador, seu modo de viver é, em casa, uma miséria pegada, quer de bens, quer de limpeza e conforto, no mar, uma tribulação continua, a carranca da morte sempre à vista.
Os barcos, esses, vivem juntinhos, aconchegados e bem unidos como irmãos duma confraria da mesma fé. Na Figueira, são uns figurões mui guapos, engalanados a cores pimponas, com títulos de rica devoção em letras de palmo e meio a farfalhudos emblemas, de religiosidade uns, outros de fantasia e ainda outros de superstição, a rutilarem vaidosos ao sol arrogan­te. Dir-se-á, porém, que o baptismo dos barcos vai perdendo o tom religioso da tradição, da devoção, em prol das coisas de comum e da política. Alguns são bem curiosos e fazem sorrir pelo inesperado como CONTAS DO PORTO, FILHO D0 DONO; outros levam-nos a arregalar os olhos pelo seu estrangeirismo, tal o de JOFFRE.
Toda a pintura dos barcos e o desenho de títulos e emblemas é feita, regra geral, por artistas da terra. Às vezes, porém, aparece um pescador mais curioso e económico que substitui o artista na obra pictura1. Mas não só emblemas e títu1os fulgem suas cores berrantes no costado dos barcos. Estes, de alto a baixo, cobrem-se de santos de variadas tintas; tais santos são divididos em faixas de cores diferentes - cada faixa, cada cor. Na Figueira, na maior parte, as faixas não vão a mais de três, sendo preta, no geral, a inferior. A sua marca de capitania é f1103y.
Ora da pintura dos barcos o mais curioso e atraente está nos emblemas ou divisas. Estas, tanto são marcas de fantasia, como religiosas ou supersticiosas. No primeiro caso, abundam os corações complicando-se variadamente; no segundo, sobejam as cruzes com feitios diversos; no terceiro, multiplicam-se os círculos concêntricos - cada roda, cada cor - e o signo Saimão, uma vezes simp1es, outras recortado em cores e ainda mantido num. círculo, como amuletos de grande virtude protectora. Este signo, a célebre pentalfa ou estrela de Mercúrio, vem de tempos imemoriais e foi do grande voga na magia medieval e nas crenças lusas.
Pescadores há que, na ideia de dar maior realce a seus barcos, os atulham com dois, três e mais emblemas como um da Figueira cuja ornamentação ia a quatro divisas.
De graúda variedade de marcas ou divisas, bastantes há com pequenas variações: os CORAÇÕES, as CRUZES, o SIGNO SAIMÂO, os SARILHOS e as GRADES, respectivamente MOINHOS e ENCOMENDAS; na Figueira além destas, cujo sentido é compreensível, há ainda umas outras que se não percebem e que os pescadores dão à conta de simples ornatos: os PANAIS, que descem da segunda ou terceira faixa colorida, de ambos os lados dos barcos, os_ÓCULOS (ASPAS CERRADAS na Figueira) postos à laia de aspas, nos títulos.

In Terra Portuguesa, 1922, (sem menção do autor) ret. de edição polic. da Biblioteca Municipal Pedro Fernandes Tomás, 1984