Faz-se a pesca da sardinha no Inverno, na Figueira. Para salgar, a melhor sardinha é a de Janeiro. As redes empregadas nesta pesca são as chamadas SARDINHEIRAS ou PEÇAS. Durante o Verão saem os pescadores a apanha da raia, pescada, faneca, rodovalho, linguado e congro.
Recolhendo os lucros do trabalho, não há nesta gente o cuidado de os regular para se cobrir das vicissitudes da vida, que não são poucas. É largo e bem acentuado no pescador o espírito de imprevidência. Por isso comem e bebem todos os ganhos, enquanto duram, os quais, bem repartidos, davam margem a afrontrar os maus dias de ociosidade forçada, os da tempestade quando o mar urra temerosamente como cem leões de ventre rasgado, quando o mar se alça contorsionado, em convulsões monstruosas e frenéticos remoinhos, a querer engo1ir a terra, a querer escalar o céu...
A horas de fartura, poucas, correspondem horas de escassez, muitas. E, já se sabe, um dos meios deste desperdiçar é o vinho.
Guarda esta gente do mar uma viva indiferença por tudo. Até, talvez, será este espírito de indiferença bem maior que o da imprevidência. Quebra-a, porém, o vinho e só ele anima os pescadores. Mas lutando a toda a hora com a morte nas fainas do mar traiçoeiro quantas vezes! - de que lhes valerá o arrecadar, o dar valor às coisas que os outros estimam!
Quando não pescam, não sabem o que fazer. Daí, envoltos em suas ásperas farpelas de saragoça curtida, carapuças negras a tombar-lhes sobre uma orelha e de cachimbo queimado a fumegar densos vapores, segue até às vendas com zurrapas reclamadas a rótulos sedutores do bom verdasco e bom maduro, a gastar o tempo na bela sociedade e o cabedal na bela pinga.
Pelas portas de seus casebres vivem as mulheres e crianças a conversar, a coser, a fazer meia e também a catar-se. Vezes por outras, acontece o 1amuriarem sua triste vida ao raro caminheiro de seus bairros. No fundo, toda a vida do pescador, seu modo de viver é, em casa, uma miséria pegada, quer de bens, quer de limpeza e conforto, no mar, uma tribulação continua, a carranca da morte sempre à vista.
Os barcos, esses, vivem juntinhos, aconchegados e bem unidos como irmãos duma confraria da mesma fé. Na Figueira, são uns figurões mui guapos, engalanados a cores pimponas, com títulos de rica devoção em letras de palmo e meio a farfalhudos emblemas, de religiosidade uns, outros de fantasia e ainda outros de superstição, a rutilarem vaidosos ao sol arrogante. Dir-se-á, porém, que o baptismo dos barcos vai perdendo o tom religioso da tradição, da devoção, em prol das coisas de comum e da política. Alguns são bem curiosos e fazem sorrir pelo inesperado como CONTAS DO PORTO, FILHO D0 DONO; outros levam-nos a arregalar os olhos pelo seu estrangeirismo, tal o de JOFFRE.
Toda a pintura dos barcos e o desenho de títulos e emblemas é feita, regra geral, por artistas da terra. Às vezes, porém, aparece um pescador mais curioso e económico que substitui o artista na obra pictura1. Mas não só emblemas e títu1os fulgem suas cores berrantes no costado dos barcos. Estes, de alto a baixo, cobrem-se de santos de variadas tintas; tais santos são divididos em faixas de cores diferentes - cada faixa, cada cor. Na Figueira, na maior parte, as faixas não vão a mais de três, sendo preta, no geral, a inferior. A sua marca de capitania é f1103y.
Ora da pintura dos barcos o mais curioso e atraente está nos emblemas ou divisas. Estas, tanto são marcas de fantasia, como religiosas ou supersticiosas. No primeiro caso, abundam os corações complicando-se variadamente; no segundo, sobejam as cruzes com feitios diversos; no terceiro, multiplicam-se os círculos concêntricos - cada roda, cada cor - e o signo Saimão, uma vezes simp1es, outras recortado em cores e ainda mantido num. círculo, como amuletos de grande virtude protectora. Este signo, a célebre pentalfa ou estrela de Mercúrio, vem de tempos imemoriais e foi do grande voga na magia medieval e nas crenças lusas.
Pescadores há que, na ideia de dar maior realce a seus barcos, os atulham com dois, três e mais emblemas como um da Figueira cuja ornamentação ia a quatro divisas.
De graúda variedade de marcas ou divisas, bastantes há com pequenas variações: os CORAÇÕES, as CRUZES, o SIGNO SAIMÂO, os SARILHOS e as GRADES, respectivamente MOINHOS e ENCOMENDAS; na Figueira além destas, cujo sentido é compreensível, há ainda umas outras que se não percebem e que os pescadores dão à conta de simples ornatos: os PANAIS, que descem da segunda ou terceira faixa colorida, de ambos os lados dos barcos, os_ÓCULOS (ASPAS CERRADAS na Figueira) postos à laia de aspas, nos títulos.
In Terra Portuguesa, 1922, (sem menção do autor) ret. de edição polic. da Biblioteca Municipal Pedro Fernandes Tomás, 1984
Recolhendo os lucros do trabalho, não há nesta gente o cuidado de os regular para se cobrir das vicissitudes da vida, que não são poucas. É largo e bem acentuado no pescador o espírito de imprevidência. Por isso comem e bebem todos os ganhos, enquanto duram, os quais, bem repartidos, davam margem a afrontrar os maus dias de ociosidade forçada, os da tempestade quando o mar urra temerosamente como cem leões de ventre rasgado, quando o mar se alça contorsionado, em convulsões monstruosas e frenéticos remoinhos, a querer engo1ir a terra, a querer escalar o céu...
A horas de fartura, poucas, correspondem horas de escassez, muitas. E, já se sabe, um dos meios deste desperdiçar é o vinho.
Guarda esta gente do mar uma viva indiferença por tudo. Até, talvez, será este espírito de indiferença bem maior que o da imprevidência. Quebra-a, porém, o vinho e só ele anima os pescadores. Mas lutando a toda a hora com a morte nas fainas do mar traiçoeiro quantas vezes! - de que lhes valerá o arrecadar, o dar valor às coisas que os outros estimam!
Quando não pescam, não sabem o que fazer. Daí, envoltos em suas ásperas farpelas de saragoça curtida, carapuças negras a tombar-lhes sobre uma orelha e de cachimbo queimado a fumegar densos vapores, segue até às vendas com zurrapas reclamadas a rótulos sedutores do bom verdasco e bom maduro, a gastar o tempo na bela sociedade e o cabedal na bela pinga.
Pelas portas de seus casebres vivem as mulheres e crianças a conversar, a coser, a fazer meia e também a catar-se. Vezes por outras, acontece o 1amuriarem sua triste vida ao raro caminheiro de seus bairros. No fundo, toda a vida do pescador, seu modo de viver é, em casa, uma miséria pegada, quer de bens, quer de limpeza e conforto, no mar, uma tribulação continua, a carranca da morte sempre à vista.
Os barcos, esses, vivem juntinhos, aconchegados e bem unidos como irmãos duma confraria da mesma fé. Na Figueira, são uns figurões mui guapos, engalanados a cores pimponas, com títulos de rica devoção em letras de palmo e meio a farfalhudos emblemas, de religiosidade uns, outros de fantasia e ainda outros de superstição, a rutilarem vaidosos ao sol arrogante. Dir-se-á, porém, que o baptismo dos barcos vai perdendo o tom religioso da tradição, da devoção, em prol das coisas de comum e da política. Alguns são bem curiosos e fazem sorrir pelo inesperado como CONTAS DO PORTO, FILHO D0 DONO; outros levam-nos a arregalar os olhos pelo seu estrangeirismo, tal o de JOFFRE.
Toda a pintura dos barcos e o desenho de títulos e emblemas é feita, regra geral, por artistas da terra. Às vezes, porém, aparece um pescador mais curioso e económico que substitui o artista na obra pictura1. Mas não só emblemas e títu1os fulgem suas cores berrantes no costado dos barcos. Estes, de alto a baixo, cobrem-se de santos de variadas tintas; tais santos são divididos em faixas de cores diferentes - cada faixa, cada cor. Na Figueira, na maior parte, as faixas não vão a mais de três, sendo preta, no geral, a inferior. A sua marca de capitania é f1103y.
Ora da pintura dos barcos o mais curioso e atraente está nos emblemas ou divisas. Estas, tanto são marcas de fantasia, como religiosas ou supersticiosas. No primeiro caso, abundam os corações complicando-se variadamente; no segundo, sobejam as cruzes com feitios diversos; no terceiro, multiplicam-se os círculos concêntricos - cada roda, cada cor - e o signo Saimão, uma vezes simp1es, outras recortado em cores e ainda mantido num. círculo, como amuletos de grande virtude protectora. Este signo, a célebre pentalfa ou estrela de Mercúrio, vem de tempos imemoriais e foi do grande voga na magia medieval e nas crenças lusas.
Pescadores há que, na ideia de dar maior realce a seus barcos, os atulham com dois, três e mais emblemas como um da Figueira cuja ornamentação ia a quatro divisas.
De graúda variedade de marcas ou divisas, bastantes há com pequenas variações: os CORAÇÕES, as CRUZES, o SIGNO SAIMÂO, os SARILHOS e as GRADES, respectivamente MOINHOS e ENCOMENDAS; na Figueira além destas, cujo sentido é compreensível, há ainda umas outras que se não percebem e que os pescadores dão à conta de simples ornatos: os PANAIS, que descem da segunda ou terceira faixa colorida, de ambos os lados dos barcos, os_ÓCULOS (ASPAS CERRADAS na Figueira) postos à laia de aspas, nos títulos.
In Terra Portuguesa, 1922, (sem menção do autor) ret. de edição polic. da Biblioteca Municipal Pedro Fernandes Tomás, 1984