19 de dez. de 2007

PEIXEIRAS



Vinham de Quiaios, de onde eram naturais, vergadas ao peso das canastras, percorrendo calvários de areia, de porta em porta, na venda do seu peixe. Atravessavam ermos e pinheirais, batendo léguas desmedidas, ágeis e descal­ças, bem dispostas, e sempre com resposta adequada para as mais inesperadas situações.
Que peixe vendiam estas sardinheiras trota-mundos? Obvi­amente que, na maioria dos casos era a sardinha que imperava; porém, de vez em quando, la vinha um carapau para desfastio, ou o biqueirão, ou, mais raramente a raia pintalgada. E também a petinga vendida ao prato, muito reclamada pelas descamisadelas do milho …
Eram duas as peixeiras mais assíduas que faziam esta volta, mãe e filha, chamadas Marcolina e Benvinda, respectivamente; vêmo-las ainda, altas e magras, esgalgadas mesmo, de pé descalço e empreendedor, um ar sempre prazenteiro. Percorriam lugarejos que não vêm no mapa, numa corrida contínua, saltitantes, lutando pela vida, falando uma linguagem algo estrambótica, onde sobres­saía a pronúncia afrancesada do u. E por esta maneira de falar, logo se via de onde eram naturais. Ossos de ferro, dizia quem as via passar, sempre no mesmo passo estugado, levantando por vezes a canastra nas mãos, certamente para darem descanso à cabeça. Parece que haviam nascido para andarem eternamente debaixo do carrego das cestas. Até porque, à medida que iam vendendo o seu peixe, iam­-nas carregando de vária mercadoria que recebiam em troca: um çalamim de feijão, algum punhado de milho, uns ovos, num simulacro de verdadeira troca directa, que, por aqui e por esses tempos, era bastante comum; e nunca se sabia quem ficava a ganhar com a permuta, mas isso, para o caso tanto faz.(…)
A bem dizer, as sardinheiras não caminhavam. No seu deambular eterno, mal lhes iria o comércio se praticassem o passo, ainda que apressado, dos caminheiros normais; não venderiam metade do pescado, deixando sem conduto muitos fregueses da volta. Inventaram então aquelas passadas, nervosas e rápidas, saltarilhas, que tinham tanto de marcha atlética como do caminhar da boieira assustada. O seu passo era tudo harmonia e rápida progressão, simultaneamente, azafamadas, o que fazia com que vendessem o seu peixe a tempo e horas. Peixe que não era mercado ao quilo, como hoje, mas ao cento, tendo como sub-múltiplos o meio cento e o quarteirão. Ao aviarem a freguesa, as peixeiras contavam as quantidades requeridas às mãos, sendo que cada cento comportava 25 mãos e, logicamente, o meio cento, doze mãos e duas unidades, e o quarteirão, seis mãos e uma unidade. Evitava-se assim, com esta forma de venda, o custo e o peso da balança na canastra, o que não era coisa de somenos importância para quem tão sobrecarregada andava sempre de trabalhos e de falta de dinheiro.
E como sobrava algum tempo da missão cumprida, que as sardinheiras geriam sabiamente junto de cada freguesa, havia azo ainda para se darem notícias daqui e dali, que elas recolhiam de póvoa em póvoa na sua recovagem diária. E também para comerem uma bucha de pão, quando não mesmo um caldinho apressado que alguma freguesa, sempre generosa, lhes servia numa malga. Comi­am cá fora no aido ou no pátio, sempre de pé, porém descansando a canastra no chão. Que era a única vez, seguramente, em que se podia ver uma sardinheira sem o fardo diário à cabeça.
Nas tardes compridas de Verão, ei-las que enfrentavam a canícula de peito feito, para que nunca faltasse na casa gandaresa a sardinha que pingava na broa, mormente a sardinha, repita-se, que o seu denodo e empenho na luta diária faziam chegar até nós. Atravessavam caminhos imensos de areia, pela zina do calor, carregando a canastra eterna, ao som estrídulo da cegarrega. E no Inverno, arrostavam com o frio e a chuva, brigavam com o vento de frente, ou eram empurradas como se fossem aves sem defesa. Mesmo assim, cumpriam à risca o fadário do seu roteiro, só não o fazendo quando o peixe faltava na origem. Ganhavam a sua vida nesta roda viva, e ganhavam também o estabelecimento de laços afectivos com as populações por onde passavam.
(…)A sua odisseia era bem o espelho de um povo que, em épocas não muito recuadas, esgrimia a sua tenacidade para sobreviver nas condições mais adversas.

Idalécio Cação, Gândara Antiga (relatos idênticos se encontram noutras fontes; v.g. Marinha das Ondas na história e na lenda, de Manuel Cintrão (foto))