Vinham de Quiaios, de onde eram naturais, vergadas ao peso das canastras, percorrendo calvários de areia, de porta em porta, na venda do seu peixe. Atravessavam ermos e pinheirais, batendo léguas desmedidas, ágeis e descalças, bem dispostas, e sempre com resposta adequada para as mais inesperadas situações.
Que peixe vendiam estas sardinheiras trota-mundos? Obviamente que, na maioria dos casos era a sardinha que imperava; porém, de vez em quando, la vinha um carapau para desfastio, ou o biqueirão, ou, mais raramente a raia pintalgada. E também a petinga vendida ao prato, muito reclamada pelas descamisadelas do milho …
Eram duas as peixeiras mais assíduas que faziam esta volta, mãe e filha, chamadas Marcolina e Benvinda, respectivamente; vêmo-las ainda, altas e magras, esgalgadas mesmo, de pé descalço e empreendedor, um ar sempre prazenteiro. Percorriam lugarejos que não vêm no mapa, numa corrida contínua, saltitantes, lutando pela vida, falando uma linguagem algo estrambótica, onde sobressaía a pronúncia afrancesada do u. E por esta maneira de falar, logo se via de onde eram naturais. Ossos de ferro, dizia quem as via passar, sempre no mesmo passo estugado, levantando por vezes a canastra nas mãos, certamente para darem descanso à cabeça. Parece que haviam nascido para andarem eternamente debaixo do carrego das cestas. Até porque, à medida que iam vendendo o seu peixe, iam-nas carregando de vária mercadoria que recebiam em troca: um çalamim de feijão, algum punhado de milho, uns ovos, num simulacro de verdadeira troca directa, que, por aqui e por esses tempos, era bastante comum; e nunca se sabia quem ficava a ganhar com a permuta, mas isso, para o caso tanto faz.(…)
A bem dizer, as sardinheiras não caminhavam. No seu deambular eterno, mal lhes iria o comércio se praticassem o passo, ainda que apressado, dos caminheiros normais; não venderiam metade do pescado, deixando sem conduto muitos fregueses da volta. Inventaram então aquelas passadas, nervosas e rápidas, saltarilhas, que tinham tanto de marcha atlética como do caminhar da boieira assustada. O seu passo era tudo harmonia e rápida progressão, simultaneamente, azafamadas, o que fazia com que vendessem o seu peixe a tempo e horas. Peixe que não era mercado ao quilo, como hoje, mas ao cento, tendo como sub-múltiplos o meio cento e o quarteirão. Ao aviarem a freguesa, as peixeiras contavam as quantidades requeridas às mãos, sendo que cada cento comportava 25 mãos e, logicamente, o meio cento, doze mãos e duas unidades, e o quarteirão, seis mãos e uma unidade. Evitava-se assim, com esta forma de venda, o custo e o peso da balança na canastra, o que não era coisa de somenos importância para quem tão sobrecarregada andava sempre de trabalhos e de falta de dinheiro.
E como sobrava algum tempo da missão cumprida, que as sardinheiras geriam sabiamente junto de cada freguesa, havia azo ainda para se darem notícias daqui e dali, que elas recolhiam de póvoa em póvoa na sua recovagem diária. E também para comerem uma bucha de pão, quando não mesmo um caldinho apressado que alguma freguesa, sempre generosa, lhes servia numa malga. Comiam cá fora no aido ou no pátio, sempre de pé, porém descansando a canastra no chão. Que era a única vez, seguramente, em que se podia ver uma sardinheira sem o fardo diário à cabeça.
Nas tardes compridas de Verão, ei-las que enfrentavam a canícula de peito feito, para que nunca faltasse na casa gandaresa a sardinha que pingava na broa, mormente a sardinha, repita-se, que o seu denodo e empenho na luta diária faziam chegar até nós. Atravessavam caminhos imensos de areia, pela zina do calor, carregando a canastra eterna, ao som estrídulo da cegarrega. E no Inverno, arrostavam com o frio e a chuva, brigavam com o vento de frente, ou eram empurradas como se fossem aves sem defesa. Mesmo assim, cumpriam à risca o fadário do seu roteiro, só não o fazendo quando o peixe faltava na origem. Ganhavam a sua vida nesta roda viva, e ganhavam também o estabelecimento de laços afectivos com as populações por onde passavam.
(…)A sua odisseia era bem o espelho de um povo que, em épocas não muito recuadas, esgrimia a sua tenacidade para sobreviver nas condições mais adversas.
Idalécio Cação, Gândara Antiga (relatos idênticos se encontram noutras fontes; v.g. Marinha das Ondas na história e na lenda, de Manuel Cintrão (foto))
Que peixe vendiam estas sardinheiras trota-mundos? Obviamente que, na maioria dos casos era a sardinha que imperava; porém, de vez em quando, la vinha um carapau para desfastio, ou o biqueirão, ou, mais raramente a raia pintalgada. E também a petinga vendida ao prato, muito reclamada pelas descamisadelas do milho …
Eram duas as peixeiras mais assíduas que faziam esta volta, mãe e filha, chamadas Marcolina e Benvinda, respectivamente; vêmo-las ainda, altas e magras, esgalgadas mesmo, de pé descalço e empreendedor, um ar sempre prazenteiro. Percorriam lugarejos que não vêm no mapa, numa corrida contínua, saltitantes, lutando pela vida, falando uma linguagem algo estrambótica, onde sobressaía a pronúncia afrancesada do u. E por esta maneira de falar, logo se via de onde eram naturais. Ossos de ferro, dizia quem as via passar, sempre no mesmo passo estugado, levantando por vezes a canastra nas mãos, certamente para darem descanso à cabeça. Parece que haviam nascido para andarem eternamente debaixo do carrego das cestas. Até porque, à medida que iam vendendo o seu peixe, iam-nas carregando de vária mercadoria que recebiam em troca: um çalamim de feijão, algum punhado de milho, uns ovos, num simulacro de verdadeira troca directa, que, por aqui e por esses tempos, era bastante comum; e nunca se sabia quem ficava a ganhar com a permuta, mas isso, para o caso tanto faz.(…)
A bem dizer, as sardinheiras não caminhavam. No seu deambular eterno, mal lhes iria o comércio se praticassem o passo, ainda que apressado, dos caminheiros normais; não venderiam metade do pescado, deixando sem conduto muitos fregueses da volta. Inventaram então aquelas passadas, nervosas e rápidas, saltarilhas, que tinham tanto de marcha atlética como do caminhar da boieira assustada. O seu passo era tudo harmonia e rápida progressão, simultaneamente, azafamadas, o que fazia com que vendessem o seu peixe a tempo e horas. Peixe que não era mercado ao quilo, como hoje, mas ao cento, tendo como sub-múltiplos o meio cento e o quarteirão. Ao aviarem a freguesa, as peixeiras contavam as quantidades requeridas às mãos, sendo que cada cento comportava 25 mãos e, logicamente, o meio cento, doze mãos e duas unidades, e o quarteirão, seis mãos e uma unidade. Evitava-se assim, com esta forma de venda, o custo e o peso da balança na canastra, o que não era coisa de somenos importância para quem tão sobrecarregada andava sempre de trabalhos e de falta de dinheiro.
E como sobrava algum tempo da missão cumprida, que as sardinheiras geriam sabiamente junto de cada freguesa, havia azo ainda para se darem notícias daqui e dali, que elas recolhiam de póvoa em póvoa na sua recovagem diária. E também para comerem uma bucha de pão, quando não mesmo um caldinho apressado que alguma freguesa, sempre generosa, lhes servia numa malga. Comiam cá fora no aido ou no pátio, sempre de pé, porém descansando a canastra no chão. Que era a única vez, seguramente, em que se podia ver uma sardinheira sem o fardo diário à cabeça.
Nas tardes compridas de Verão, ei-las que enfrentavam a canícula de peito feito, para que nunca faltasse na casa gandaresa a sardinha que pingava na broa, mormente a sardinha, repita-se, que o seu denodo e empenho na luta diária faziam chegar até nós. Atravessavam caminhos imensos de areia, pela zina do calor, carregando a canastra eterna, ao som estrídulo da cegarrega. E no Inverno, arrostavam com o frio e a chuva, brigavam com o vento de frente, ou eram empurradas como se fossem aves sem defesa. Mesmo assim, cumpriam à risca o fadário do seu roteiro, só não o fazendo quando o peixe faltava na origem. Ganhavam a sua vida nesta roda viva, e ganhavam também o estabelecimento de laços afectivos com as populações por onde passavam.
(…)A sua odisseia era bem o espelho de um povo que, em épocas não muito recuadas, esgrimia a sua tenacidade para sobreviver nas condições mais adversas.
Idalécio Cação, Gândara Antiga (relatos idênticos se encontram noutras fontes; v.g. Marinha das Ondas na história e na lenda, de Manuel Cintrão (foto))