9 de set. de 2007

* VIAGEM NA NOSSA TERRA

LOURENÇO VIEGAS: (sempre risonho, a gostar) Parece-me que vejo tremer o Cardeal Legado, levantar-se e responder: «Não venho tra­zer-vos riquezas, mas a ensinar-vos a fé vim eu, que dela parece vos esquecestes...».

D. AFONSO HENRIQUES: Não me contive e explodi com braveza: «Calai-vos, Dom Cardeal, que mentis pela gorja! Ensinar-me a fé!!! Tão bem em Portugal como em Roma sabemos que Cristo nasceu da Virgem Maria, que como vós outros cremos na Santa Trindade!

GONÇALO DE SOUSA: Os vossos olhos chamejavam de furor...

LOURENÇO VIEGAS: Toda a ousadia do Legado desapareceu como fumo. E sem afinar com resposta para vos dar saiu do alcácer... (rindo)

D. AFONSO HENRIQUES: Pois foi assim, Lourenço Viegas... Dei a Coimbra um Bispo que me excomungou, porque assim o quis o Papa. Dei-lhe outro para me absolver, porque assim o quis eu.

LOURENÇO VIEGAS: (comentando, a rir) O Bispo Negro!... (afasta-se uns passos, fica olhando a barra e o rio.) Grande e belo estuário, este do Mondego!... (Antão Fernandes, que tinha entrado mo­mentos antes, ficou-se a observar; aproxima-se de Lourenço Viegas, que parece embevecido na contemplação de Rio e Mar...) I

ANTÃO FERNANDES: E vai assim, largo, grande, até Montemor... (Lourenço Viegas só agora repara nele, olha-o, fala depois)

LOURENÇO VIEGAS: Pelo que dizes, conheces bem o Rio Mondego...

ANTÃO FERNANDES: Conheço muito bem, até Coimbra. Tenho passado a vida aqui, nesta grande bacia do Mondego.

LOURENÇO VIEGAS: Quem és tu? O que é que fazes?

ANTÃO FERNANDES: O meu avô - já morreu há uns anos - era piloto aqui na barra do Mondego; eu sou calafate. Trabalho numa das tercenas que constroem e consertam embarcações. Chamo­-me Antão Fernandes. E vossemecê é o senhor D. Lourenço Viegas... (espanto e sorriso deste) Disse-me um rapaz que é carpinteiro de machado e esteve a falar com um marinheiro do barco do senhor Rei D. Afonso Henriques. E até me disse que Vossa Senhoria era Espadeiro... (risos de Lourenço Viegas)

LOURENÇO VIEGAS: Estás bem informado, rapaz... (Transição, rindo) Vejo que conheces bem o estuário do Mondego e o movimento da sua navegação. Mas talvez não saibas que desde os tempos antigos demandavam a foz do Mondego embarcações gregas, romanas, e outras...

ANTÃO FERNANDES: Isso não sabia, não senhor. Mas posso dizer-lhe que vi - há... uma dúzia de anos - (recordando) foi no ano de 1147 - uma coisa grande, que nunca mais me esquece: uma multidão de navios grandes e pequenos, fustas da armada real, galeras, caravelas, abrigadas aqui nesta grande ensea­da do Mondego, para acompanharem as forças navais da Cruzada que ia conquistar Lisboa.

MARTIM GONÇALVES: (Indo ao Rei) Quando Vossa Mercê desejar subir à Abadia.. .

D. AFONSO HENRIQUES: Lourenço Viegas! (para os outros) Vamos então ver a célebre vinha do Abade Pedro! (Saem todos falando alegre­mente, com grande animação)

*Extracto da peça de José da Silva Ribeiro (1894-1990), Viagem na nossa Terra