É ele uma interessantíssima «Carta de foro duma Marinha feita em Lavos, em 1217, a uns homens daquele lugar, pelo Bispo de Coimbra, D. Pedro», e portanto, precisamente o tal documento comprovativo do século XIII, que faltava ao nosso historiador.
Pela «Carta de Foral ou povoação de Lavos outorgada aos seus habitantes pelo Bispo D. Pedro e Cabido de Coimbra, em Setembro de 1190» publicada no Album Figueirense, sabíamos da existência de marinhas de sal em Lavos, àquela data, e que uma dessas marinhas pagava o foro de um sétimo, enquanto outra denominada a da rainha, devia pagar metade da produção, mas não podíamos atinar com a razão da disparidade nas condições estatuídas para esta e as outras e ainda, porque se distinguia esta com o pomposo título de marinha da rainha. Estes eram para nós enigmas indecifráveis.
A leitura do nosso desencantado documento que temos a grata satisfação de patentear a todos os figueirenses, e em especial aos que são salicultores, mostra-nos que a régia personagem que aqui fundou novas salinas, introduzindo-lhes, certamente, aperfeiçoamentos até então descurados, e não se limitava a ser uma proprietária adventícia de outras anteriormente existentes, baseadas em moldes rotineiros e de proporções acanhadas, foi a Rainha D. Dulce, mulher de D.Sancho I.
Compreende-se que, vivendo esta simpática senhora, ora no seu solar de Coimbra, ora no seu alcácer de Montemor-o-Velho, onde (como todos os reis anteriores a D. Dinis) tinham alternadamente a sua corte, desse com os numerosos filhos, frequentes passeios até à foz do Mondego, não só para que pudessem contemplar a grandiosa e impressionante paisagem que o mar lhes oferecia, mas também para gozarem as delícias da fresca brisa marítima nos calmosos dias de verão.
Dirá talvez alguém que isto tudo não passa de pura fantasia nossa; e no entanto nada há de mais verosímil.
Ninguém contestará que em Coimbra, no verão, há dias de calor sufocante, e suas altezas não ignoravam o bem estar, e o prazer, mesmo, que nesses dias se disfrutam à beira-mar. Que poderia impedi-las de se apropriarem de tais benefícios? A falta de boas estradas? Mas não tinham elas a via fluvial, então, muito mais praticável, pela qual podiam fazer-se transportar na galeota privativa da família?
Além disso, não era da pesqueira de Emide que a sua mesa era fornecida do melhor e mais gostoso peixe? E não era das marinhas de Tavarede e de Lavos que provinha o precioso sal, esse indispensável condimento com que era temperada a sua comida?
E não teriam nunca os príncipes manifestado a curiosidade e o desejo de visitarem o porto de S. Julião do Mondego, onde algumas caravelas dos cruzados entraram para meter provisões, enquanto as outras pairavam na cala de Buarcos, aguardando-as para dali seguirem a coadjuvar o seu avô Senhor D. Afonso Henriques, na tomada de Lisboa aos mouros?
Tudo isto eram motivos bastante eloquentes para a justificação de tais visitas, sendo naturalíssimo que vivendo aqui tão próximo, sendo-lhe todas estas coisas tão familiares, por lhe dizerem respeito, a família real não desprezasse o ensejo de aproveitar as lições práticas que delas podia colher, acrescendo ainda mais os benefícios que ao mesmo tempo lhes advinham para a sua saúde.
Considerando, pois, bem cremos que ninguém ousará classificar as nossas hipóteses de absurdas e inadmissíveis.
Seria por certo, num desses passeios de estudo e recreio que a Rainha com os Infantes, ao contornarem com o seu barco a Morraceira, pelo sul, depararam com as marinhas dos Templários e outras aí existentes, justamente quando se encontravam em laboração, interessando-lhes por tal modo os trabalhos dos marnoteiros, que logo tomaram a resolução de fundar outra que se destacasse das demais, pela sua imponência e rendimento.
D. Sancho, não deixou de aplaudir a iniciativa de sua esposa, tão de acordo com os seus planos de repovoamento dos lugares antes devastados pelos sarracenos, como tinha sucedido por mais de uma vez a Lavos, e de fomento da agricultura e doutras fontes de riqueza pública; de maneira que A MARINHA DE D. DULCE, não ficou resumida a um desejo de ocasião, nem ainda a um simples projecto, mas foi, de facto, UMA REALIDADE!
*Coelho, João, De como uma rainha portuguesa da Idade Média foi salicultora na foz do Mondego, O Figueirense, 1943, rep. por Cintrão, Marinha das Ondas…