17 de set. de 2007

JOÃO CÉSAR MONTEIRO (1939-2003)



*“Tive infância caprichosa e bem nutrida, no seio de uma família fortemente dominada pelo espírito, chamemos-lhe assim, da 1 ª República. Escusado será dizer que abundavam os dichotes anti-clericais, muito embora o meu pai desejasse que eu viesse a seguir a carreira eclesiástica. Em suma: não se percebia nada. Pelo menos à primeira vista.”
“(...) fixei-me com a família em Lisboa, para poder prosseguir a minha medíocre odisseia liceal. Instalado no colégio do Dr. Mário Soares, acabei por ser expulso ao contrair perigosíssima doença venérea. Pensei, então, que entre a política e as fraquezas da carne devia existir qualquer obscena incompatibilidade e nunca mais fui visto na companhia de políticos. (...) Filho que era de meu pai, atravessei senhorialmente muitos e variados empregos, mas em breve me apercebi que já não podia olhar o mundo da mesma maneira. Fui até Paris para ensaiar até onde me era possível ir. Não me era possível ir muito longe. Meses depois, «ayant connu pas mal de choses» era repatriado. Em 1960, encontrei o Sr. Seixas Santos que teve a bondade de me ensinar um pouco do muito que sabe de cinema.(...)”
“(...) trabalhei como assistente de realização do Sr. Perdigão Queiroga e admito que poderia ter aprendido mais qualquer coisinha se não tivesse sido tão presunçoso. Em 1963, na injusta qualidade de bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, parti para Londres a fim de frequentar a London School of Film Technique. Suponho que nunca por aquela escola passou aluno tão mau, mas nesse passo não tive grandes culpas no cartório: é que de facto os ingleses não nasceram para o cinema. (...) Em 1965, conheci o Paulo Rocha e os seus Verdes Anos, o Fernando Lopes e o seu Belarmino. Tomei-me de amizade pelo Fernando e de amores pelo filme do senhor Rocha, cujos hábitos de anacoreta o tornavam pouco acessível.”
“(…) Nesse mesmo ano, tentei pôr de pé um projecto de filme em 16 m/m, intitulado Quem espera por sapatos de defunto morre descalço. Dois dias de filmagens e rabinho entre as pernas. Falta de xis.(...) De novo na vida civil, os meus excessos ultra-românticos, temperados pela mais nobre profundidade sentimental, tiveram enfim (ai filhas de Sidon) a justa consagração, o que não me livrou de amouchar durante um ano como escriba de Filmes Castello Lopes, Lda.”
(…) O filme começou por ser relativamente mal recebido junto do Mecenas (quereriam ópera por 180 contos?), continuou, pateado num festival no Sul de Espanha e foi friamente acolhido pelos críticos presentes em Nice, aquando da chamada Semaine du Jeune Cinéma Portugais. Foi pena, porque me teria dado jeito, sobretudo no que toca à fruição de algumas benesses locais, mas já que não pôde ser, paciência! Tirando isso, aproveitei a estadia niceoise para comprar um lindo fato de banho de duas peças com a nota de 100 francos que o João Bénard me emprestou e ameacei partir uma garrafa de tinto na cabeça do Cunha Teles que, impensadamente, me chamou oportunista.”
(…)"Andar no cinema para ser contaminado por gravíssimos defeitos de carácter não é coisa que se faça a um velho católico e apostólico romano. Não acredito que se possam fazer bons filmes em pecado mortal e, por isso, espanta-me que a cólera do Senhor não se tenha ainda abatido sobre mim. É certo que o Senhor conhece a extrema pobreza em que vivo e, não obstante os caminhos da perdição serem infinitos, tem-me guiado certeiramente no exercício da minha arte."

* Da obra do cineasta, A Minha Certidão (&ETC, nº 4, 28.02.1973).